Deborah Willis encontra Roy DeCarava



Aqui vão duas dicas de leitura para o final de ano, dicas entrelaçadas, e com a vantagem dos livros estarem disponíveis online. Ambos tratam do universo da identidade e representação visual da comunidade afroamericana na segunda metade do século XX.

Deborah Willis (1948), organizadora de Picturing us:  African American identity in photography (1994, New Press) tem desenvolvido nos últimos 30 anos uma extensa investigação sobre fotógrafos negros estadunidenses. Em 1985 lançou sua obra documental Black photographers: 1840-1940: a bio-bibliography, que teria quatro anos depois, uma edição ilustrada.

Data de 2000 seu livro mais conhecido – Reflections in black: a history of black photographers: 1840 to the present,reimpresso em 2002, que acabou por se tornar uma referência de pesquisa. A publicação é um dos marcos inaugurais nessa aproximação, embora 14 anos antes a fotojornalista Jeanne Moutoussamy-Ashe (1951) tenha lançado Viewfinders: black women photographers (1986, Dodd Mead & Co). Contando com consultoria de Willis, Jeanne consegue articular um primeiro panorama relacionando duas grandes demandas históricas. A introdução da obra revela um espetacular esforço de pesquisa, apresentando uma diversidade de fontes, uma atenta interpretação de estatísticas e uma produção visual nascente que surpreendem qualquer leitor brasileiro, que enfrenta situação adversa nesse campo.

Em 1994, Deborah Willis adota uma estratégia simples para discutir temas conexos como identidade negra e fotografia, propondo a diversas personalidades da comunidade que comentem livremente imagens relevantes nas perspectivas mais diversas. Entre os convidados está a escritora bell hooks, por exemplo, mas vamos ficar aqui com a introdução de Willis. Ela comenta algumas fotografias e acontecimentos surpreendentes, que marcam sua formação como pesquisadora. A primeira, uma das mais contundentes, acontece em uma de suas visitas regulares à biblioteca pública na Filadélfia, sua cidade natal, ainda pré-adolescente, quando descobre a obra The sweet flypaper of life.

Com imagens de Roy DeCarava (1919-2009) e texto de Langston Hughes (1902-1967), a narrativa visual apresenta o cotidiano de uma família negra no Harlem nova-iorquino na década de 1950. Publicado pela Simon & Schuster em 1955, o ensaio fotográfico contou com apoio de uma bolsa Guggenheim. Existem pelo menos duas edições adicionais em 1967 e 1984, com variações do projeto gráfico.

Nas imagens de DeCarava, a Deborah Willis de 1994 comenta como aquela garotinha descobriu o primeiro livro que falava de uma experiência que ela conhecia, na qual podia se ver. A obra acabaria por marcar a produção do fotógrafo em sua trajetória profissional ao dar forma a registros do Harlem, da música negra etc. Autor de diversos livros, organizador de A Photographer’s Gallery, que funcionou entre 1955 e 1957 em seu apartamento, DeCarava é pouco conhecido no Brasil.

Vale a pena a leitura. Aqui vão os links para as edições de 1967 (em 2 endereços, pois a demanda de leitores é grande) e de 1984, de The sweet flypaper of life, como também de Picturing us.

https://archive.org/details/sweetflypaperofl00deca (1967)
https://archive.org/details/sweetflypaperofl00decarich (1967)
https://archive.org/details/sweetflypaperofl00deca_0 (1984)

https://archive.org/details/picturingusafric0000unse (1995, Picturing us)

Aproveite e explore o projeto Internet Archive, que reúne uma biblioteca virtual e a Wayback Machine, uma máquina do tempo, projeto pioneiro sobre memória da internet: archive.org 

(publicado originalmente no FotoPlus Boletim nº 44, dez.2019)

O lápis (da natureza) e outras construções simbólicas

Este é um texto em progresso. Uma homenagem tardia, pois já passaram 50 minutos deste ontem. 19 de agosto, dia da fotografia. A seu modo, é uma aproximação sem nenhuma ligação com a fotografia, mas vai se saber.

De inicio, Mr Talbot denominou suas experimentações como “desenhos fotogênicos” e, antes de tudo, tomando a referência adiante, organizou o livro The pencil of nature (1844). Era meu “primeiro livro” favorito até descobrir o álbum Photographs of British Algae: Cyanotype Impressions, organizado um ano antes por Anna Atkins.

Não, não, de volta ao tema: estamos aqui para falar de lápis (e um dia, talvez, sobre a decisão de Talbot ao fazer tal associação).

Como disse acima, é um texto em processo. A ideia é falar sobre lápis associados à fotografia. Adoro escrever a lápis, embora só consiga fazer garatujas, simples notas efêmeras rumo às bases de dados do projeto. Escrevo em computadores desde 1980, por volta disso. Notebooks, desde 1981, acreditem: sim, laptops, o prefixo em inglês não era nada erótico. Uso personal assistants desde 1996 com suas canetas (na verdade, meros pauzinhos). Smartphones, os mais precários, há uma década. Para que uso lápis? Garatujas, não falei?

Lápis, IMS, 2019.

A imagem acima é do lápis distribuído pelo Instituto Moreira Salles, no seminário Fotografia Moderna? …, agora em agosto. Grafite um pouco duro, mas acho que vou gostar. A madeira bruta é um maneirismo há décadas, que me agrada. A borrachinha preta na ponta até funciona, limpando sem deixar marcas. Acho que não está à venda na lojinha do Instituto, muito sofisticada para ficar atenta a banalidades.

Por muito tempo, meus lápis favoritos eram da Pinacoteca de São Paulo, mas quem usa lápis? Afora os desenhistas obcecados, pelos quais sou (reflexivamente) obcecado. Pausa mercadológica: acho que todo museu deve ter em suas lojas produtos baratos, a preço de bala, do tempo que estas eram baratas (e como sempre nada saudáveis). O Museu Paulista manteve por anos em sua lojinha singelos lápis e cadernos de notas (com retratos imperiais, ufa), que são sempre um agrado ao pequeno visitante, que, sim, eles usam lápis!

_________ (20.08.2019)

Ela está pronta

Primeiro, um tombo, logo depois outro. Meses depois, imobilizada numa cama. Ainda assim, terminou dois livros de imagens.

Era manhã. Calor, cheiro de flores. Era manhã.
L., do nada, trouxe uma caixa de fósforos (por que, hoje, alguém precisaria de fósforos?). S., resoluto, conseguiu com o pessoal da manutenção um pedaço de fita isolante. M. – por que M. teria isso em seu bolso ? – ofereceu um pedaço de filme fotográfico.

Não me lembro quem teria consigo a pequena agulha. Uma agulha.
Agora, entre suas mãos, ela tinha tudo que precisava.

Só está perdido, o que nunca se conheceu: os museus e a Biblioteca de Alexandria

O luto, o choque, a reação suspensa são elementos esperados frente ao incêndio de domingo, 2 de setembro, no Museu Nacional. Meus olhos estão agora voltados para outro lugar, outras pessoas, ainda silenciosas, mas que já começaram a seu modo a trabalhar. Não para os que discutem novos projetos executivos, novos espetáculos, mas a aqueles que estão silenciosamente tentando recompor mentalmente o que queimou. Salvo o Bendegó, para o qual calor extremo e fria indiferença são elementos familiares, essas pessoas tentam, como no filme 451 de Truffaut, pensar cada sala do museu. Recompor catálogos ultrapassados, reunir imagens precárias e pensar interfaces digitais para garantir uma permanência através da cultura. Meu apoio imediato está com estes que podem pensar e gerar algo novo, novas relações com as pessoas no tempo.

Sexta, dia 7, é uma oportunidade para o encontro, o protesto e o debate público. Em São Paulo, o Museu Paulista realiza seu evento no Parque da Independência; do outro lado da cidade a Bienal de São Paulo abre ao público. Essa diversidade de pessoas, reunidas nos dois locais, expressa parte da complexa condição da cultura hoje – e seus laços com as tradições. Vá para comemorar esses eventos e pensar junto como mudar o quadro institucional da memória no Brasil.

Dia 2 de setembro pode ser a seu modo, com o tempo, uma data melhor para comemorar o dia do museu, das culturas de um país.