O luto, o choque, a reação suspensa são elementos esperados frente ao incêndio de domingo, 2 de setembro, no Museu Nacional. Meus olhos estão agora voltados para outro lugar, outras pessoas, ainda silenciosas, mas que já começaram a seu modo a trabalhar. Não para os que discutem novos projetos executivos, novos espetáculos, mas a aqueles que estão silenciosamente tentando recompor mentalmente o que queimou. Salvo o Bendegó, para o qual calor extremo e fria indiferença são elementos familiares, essas pessoas tentam, como no filme 451 de Truffaut, pensar cada sala do museu. Recompor catálogos ultrapassados, reunir imagens precárias e pensar interfaces digitais para garantir uma permanência através da cultura. Meu apoio imediato está com estes que podem pensar e gerar algo novo, novas relações com as pessoas no tempo.
Sexta, dia 7, é uma oportunidade para o encontro, o protesto e o debate público. Em São Paulo, o Museu Paulista realiza seu evento no Parque da Independência; do outro lado da cidade a Bienal de São Paulo abre ao público. Essa diversidade de pessoas, reunidas nos dois locais, expressa parte da complexa condição da cultura hoje – e seus laços com as tradições. Vá para comemorar esses eventos e pensar junto como mudar o quadro institucional da memória no Brasil.
Dia 2 de setembro pode ser a seu modo, com o tempo, uma data melhor para comemorar o dia do museu, das culturas de um país.
Lembro da sua metáfora para definir o Arquivo Histórico de São Paulo e que pode ser perfeitamente estendida às instituições brasileiras de memória: são como navios fantasmas que singram as águas contrárias do tempo, embarcações em ruínas assombrados por fantasmas humanos que vem e que vão, arrastando as correntes de suas circunstâncias e ocasionalmente emitindo gritos e sussurros de seus interesses, contra a ventania de outros humanos, esses bem reais pois detem o poder de legislar e executar as ações do tempo e que, embora transitórios, independente da bandeira que ostentam ou a que servem, insistem em jogar as águas de encontro aos costados dos navios fazendo-os estalarem e perderem mais pedaços.
Para onde vão esses navios desgrenhados? Embora todos tenham um vaticínio ou um ideal para eles, ninguém sabe ao certo e com a exceção dos fantasmas que o habitam, ninguém se importa. O Brasil é uma terra de novidades, de descobrimentos, pouco voltada ao passado e seus pertencentes, sempre apta a inventar um passado melhor e pouco dada a construir um futuro responsável uma vez que em seu presente sempre brilha o sol dos trópicos ou uma bola corta um gramado verde ou o som de pandeiros alegram o ar quente. O presente é tudo.
E eis que de repente surge de uma nuvem cinzenta um desses navios fantasmas e esquecidos, vindo dos infernos de suas existencias lancam-se no meio da praça da vida, agora fantásticos pois que exibem sua própria morte sempre espetacular e paradoxalmente inócua.
Morte sempre espetacular, ocupam todos os noticiários, um mosaico horroroso de manchetes dramáticas, imagens chocantes, vozes embargadas ou exaltadas, alimentando o falso pesar da mídia. Morte sempre inócua porque no Brasil não há responsáveis, todos somos vítimas, vítimas de nós mesmos, do nosso culto ao presente e a um presidente-deus que tudo resolva e instaure por decreto o paraíso na terra.
Morte também inócua porque um navio fantasma não morre, ele ressurge, reinaugurado no próximo evento midiático, mais horroroso do que nunca, desfalcado e descarnado, recebe até uma vela dourada nova, mas que num instante estará tão esfarrapada quanto suas antecessoras.
Vai Brasil, vai Brasil a ver navios!
Esperemos que não.