Versos inspirados pela visão de uma câmera obscura (1747)

Máquinas de desenhar constituem um extenso conjunto de instrumentos, que reúne de pantógrafos a câmeras lúcidas, mas são as câmeras obscuras as mais conhecidas. Presentes até hoje na forma das câmeras buraco de agulha (pinhole), na fotografia estenopéica, constituem desde 1839 o modelo de base para o aparato de captação de imagens com a agregação de lentes: a câmera moderna.

Seu princípio é registrado desde a antiguidade clássica, mas é ao final do século XVI que ela começa a ganhar forma e emprego efetivo. Quase um século e meio depois, em 1747 surge em Londres um singelo panfleto de 16 páginas, impresso por John Cuff ([1708]-1[772], importante fabricante e comerciante de instrumentos ópticos, intitulado: Verses occasion’d by the sight of a chamera (sic) obscura (Versos inspirados pela visão de uma câmera obscura).

Reproduzido em: COKE, Van Deren. “One hundred years of photographic history”. Albuquerque: (University of New Mexico Press, 1975.

Embora sem autoria confirmada, o longo poema de 13 páginas atribuído a Cuff faz uma elegia ao instrumento. Ao final da edição, um anúncio detalhado apresenta a variedade de produtos à venda em sua loja, com destaque para os diversos modelos de microscópios, muitos com aperfeiçoamentos ou invenções por Cuff, como o microscópio aquático, desenvolvido para observação de espécimes marinhos. A seu modo, o folheto caracteriza um modelo da publicidade comercial do período.

O frontispício traz referência a poema de Ovídio (43 a.C-[18] d.C) com o verso inicial de Metamorphoses, poema longo escrito em 8 d.C, que traça um panorama da mitologia clássica: “In nova fert animus mutatas dicere formas corpora” (Minha mente está inclinada a falar de corpos transformados em novas formas.). Armado dessa intenção, e, de certa forma, em estilo, John Cuff elabora longo poema alegórico.

Heinrich Schwarz (1894-1974), filósofo e historiador da arte, é um dos poucos que comentaram esses versos. Schwarz foi um dos pioneiros no estudo da fotografia no campo da história da arte na década de 1920, curador,  e autor da primeira monografia em 1931 dedicada a David Octavius Hill (1802-1870). Em 1975, participa postumamente com ensaio An eighteenth-century english poem on the camera obscura, no livro editado por Van Deren Coke, em homenagem a Beaumont Newhall: One hundred years of photographic history (University of New Mexico Press, p.127-138) (clique para acessar versão online).

Schwarz, algo envergonhado, aponta o poema como texto pobre elaborado por um amador. No entanto, reproduz o poema integralmente, antecedido de um breve panorama sobre o instrumento. O autor comenta o anúncio e a oferta de câmeras obscuras por Cuff, das quais nenhum modelo remanescente é conhecido. Apresentada por Cuff entre seus “curiosos instrumentos ópticos”, em meio a lanternas mágicas, binóculos para ópera etc, ela é descrita brevemente: “A Câmera Obscura para exibição de vistas em proporções e cores naturais, junto como o movimento dos objetos vivos”.

Sobre o poema, existe uma versão homônima, editada em 2010 (Galle Ecco, 22p.) com comentários críticos. O texto, em sua forma original, é um duplo desafio. Primeiro, pela modelo alegórico empregado na elegia, da qual a inspiração em Ovídio tem alguma marca, com emprego de inversões entre sujeito e predicado, bem com uso peculiar de pontuação, muitas delas agora eliminadas. Segundo, pelo forma mesma da língua inglesa no século XVIII. Aqui fazemos uma adaptação livre da primeira estrofe, e, de outra, mais adiante, na página 7 em que Cuff comenta o desafio à pintura.

“Versos motivados pela visão de uma câmera obscura

“Diga, máquina extraordinária, quem te ensinou a desenhar?
E imitar a natureza com tal habilidade divina?
Os milagres de qual [lente] criativa
Surpreenderam com espanto as classes supersticiosas,
De tolos, nos tempos de (Francis) Bacon, e fizeram-se passar por bruxaria.
Produções estranhas! A fraca Razão transcenderam;
E todos admiraram, mas poucos podiam compreender
A causa escondida; o resultado que os homens claramente veem, compelidos pela
visão de teus mistérios a acreditar.”

(…)

“Como esse pintor se vangloriaria da arte do próprio lápis?
Quem poderia transmitir tais movimentos à obra?
Mas aqui você não tem rival na tua fama;
Apenas você para copiar o conjunto da Natureza,
Tão estritamente verdadeira parece a própria imagem
Em proporções corretas; cores fortes ou fracas;
Pela luz e sombra; sem as camadas da pintura:
Para animar a imagem e inspirar,
Tais Movimentos, conforme as Figuras podem exigir.
Do céu, como Prometeu, você rouba o fogo sagrado.”


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Como citar:

MENDES, Ricardo. “Versos inspirados pela visão de uma câmera obscura (1747)”. Fotoplus Boletim, n.46, 24 de fevereiro de 2020. disponível em: <http://fotoplus.com/duas”. Acesso em: … de … de …

Ela está pronta

Primeiro, um tombo, logo depois outro. Meses depois, imobilizada numa cama. Ainda assim, terminou dois livros de imagens.

Era manhã. Calor, cheiro de flores. Era manhã.
L., do nada, trouxe uma caixa de fósforos (por que, hoje, alguém precisaria de fósforos?). S., resoluto, conseguiu com o pessoal da manutenção um pedaço de fita isolante. M. – por que M. teria isso em seu bolso ? – ofereceu um pedaço de filme fotográfico.

Não me lembro quem teria consigo a pequena agulha. Uma agulha.
Agora, entre suas mãos, ela tinha tudo que precisava.