Ricardo Hantzschel e imagens da série ‘Covidgrafias’ (2020)

FotoPlus #52 – Agosto 2020

Modos de resiliência entre o privado e o público

Fotógrafo paulistano, Ricardo Hantzschel (1964), um dos nomes mais conhecidos entre os produtores de imagens que fazem uso de recursos de captação como o pinhole, as câmeras buracos de agulha, e de processos históricos de impressão como o papel salgado, além do projeto social Cidade invertida, teve como todos nós, de uma forma ou de outra, de parar. Em meados de março, a quarentena se impôs.

Entre três de maio e primeiro de julho, sessenta postagens, algo tímidas, surgem em seu perfil @rhantzschel, no Instagram, trazendo a série Covidgrafias. Não se trata, porém, da única produção que vem a público. Dias depois, em sete de maio, a série Covidgrama surge em outro perfil – @hantzschelpinhole. Curiosamente Covidgrama aparece de forma mais livre, não articulada, mas marcada pelo uso de processos de impressão como o fotograma, a cianotipia (nº 19, por exemplo). As obras postadas, até 26 de agosto por enquanto (nº 22), são registros de experimentação, explorando cores sobrepostas e o uso de objetos inusitados e folhagens em suas impressões sem filme.

Em Covidgrafias, em seu perfil pessoal, Hantzschel constrói encadeamento distinto de imagens. Em três de maio, sua primeira postagem, ainda sem título, traz imagem apropriada de Louis Stettner (EUA. 1922-2016), tão distorcida espacialmente que mal se revela à primeira vista, sobre a qual pequenos bonecos, soldados, ocupam o terreno como num teatro de guerra. Lá já está a hashtag #mundodistopico, bem como #terradegigantes, as quais permitem, claro, leituras diretas e oblíquas.

“tudo absolutamente normal”, título que marca a segunda postagem, introduz um tom de crônica. Imenso  rinoceronte, boneco de plástico, projeta sua sombra, aparentemente sob a mesma luz solar rasante que cria sombras alongadas de pedestres no viaduto do Chá visto do alto em registro de Cristiano Mascaro.

De certa forma as diretrizes do projeto estão lançadas. Dia-a-dia, o processo minucioso, detalhista e paradoxalmente clean, se desenvolve. Captura aqui ou ali leitores, que se articulam ao seu feed ou aqueles que os algoritmos aproximam.  O prazer rápido, o like talvez não sejam suficientes e exigem que a série seja vista por nós com mais dedicação.

Hantzschel foge aos procedimentos da fotomontagem moderna. Talvez, decorrente da prática do fotograma, explora intervenções espaciais, articulando objetos, sombras que se projetam, e fotografias de um repertório da fotografia de rua, da “fotografia humanista” da segunda metade do século passado. Embora use regularmente a hashtag #apropriacao, ele está mais próximo do conceito adotada por Joan Fontcuberta (La furia de las imagenes, 2016) de adoção. Cuidar da imagem, situá-la em contexto significativo, o que, de certa forma, parece dar algum sentido maior à postagem feita em 1 de julho, ao agradecer aos que acompanharam a série, marcada pela foto que apresenta seus “companheiros”: soldadinhos de plástico e parte de sua biblioteca pessoal.

Dois aspectos podem ser tomados como cruciais. Primeiro, a relação texto e imagem, que parece ter atravessado todos os debates sobre uma visualidade moderna, questionando papéis e autonomia dos meios e explorando interações, surge agora expandida. Além do título, as postagens trazem novo traço contemporâneo: a hashtag, eco atual de uma prática em busca de eficiência informacional. Aqui, o novo está no modo como uma nuvem de termos tensiona cada imagem, em si mesma fruto de uma condensação entre imagens, objetos e intervenções espaciais geradas pelo autor.

O nonsense presente na fotomontagem moderna desde a década de 1920 entre surrealistas e práticas associadas, está em Covidgrafia próximo da ação política como em John Heartfield (1891-1968), autor também presente no campo de batalha reconstituído na série. Sombras, questionamentos à normalidade etc: as hashtags que se sucedem e marcam o período evocam ainda outro autor clássico da fotomontagem como Grete Stern (1904-1999), em especial suas obras para ilustrar artigos sobre psicanálise na revista Idilio, nos anos 1940, dirigida a um público feminino.

A menção a Stern é uma boa desculpa para lembrar que a prática da montagem, da colagem, do scrapbook é tão velha quanto à fotografia pelo menos, para mencionar assim um fenômeno intenso que ocorre na Inglaterra vitoriana entre as mulheres da aristocracia e de estratos sociais médios. Ali, retratos de carte-de-visite mesclam-se em recortes com tecidos, flores secas, num divertissment que, “inocente”, comenta e registra o espaço de poder e jogos de conquista e submissão das mulheres desses estatutos (veja aqui breve nota em FotoPlus nº 38, jul.2019).

A fotomontagem moderna politicamente compromissada, em contraponto, parece ocupada pelo masculino. Em Covidgrafias estão marcas muito próximas como os soldados de plástico (descendentes diretos de seus similares de chumbo do século passado a intoxicar seus donos), traço de um mundo masculino sob a ótica de brinquedos de gênero. Algo irônico, Hantzschel está submetido, sob outra circunstância, a um espaço de confinamento que ecoa o salão aristocrático em que autores como Lady Filmer (1838-1903) teciam suas narrativas


Tecer a narrativa parece aproximação oportuna às Covidgrafias. Como crônica, a série, em suas imagens e hashtags, ecoa, insinua o cotidiano da pandemia, da quarentena e do desgoverno. A imagem, de um passado distante, de Penélope que tece inocentemente de dia e desmancha seu trabalho à noite a protelar o inevitável – que é preciso agir –, parece eclodir de certa forma agora. Irônico, que masculino e feminino possam se misturar em tempos de conflito, em que bordar possa ser uma forma adequada para descrever o procedimento – meticuloso e banal –  de construção que ocorre em Covidgrafias. O inevitável, que é necessário agir, corre ao fundo dessas postagens, entre momentos de humor ou sensualidade, no suceder de hashtags em crescendo – #barbarie #semcomando #desgovernado #tubaina #general #distracao #blacklivesmatter #mentira #pessimismocosmico.

De certa forma, essa necessidade se impõe e parece surgir abruptamente na postagem nº 60, que encerra a sequência. Sob o título Intolerância, numa cadeia de tags que termina na cadência: #intolerancia #asno #burro, o garoto na imagem de Philip Jones Griffiths (1936-2008) arremessa imensa rocha sobre um piano já destruído, em meio a um paisagem marcada por destroços. Imprecisa, aberta a especulações, a imagem do gesto, entre violento e lúdico, encerra um processo de reflexão e condensação visual.

Alguns traços da série acabaram por ecoar igualmente na sequência de Covidgrama. Nesse sentido, as imagens que exploram intervenções sobre capas de jornais, que trazem eventos de forma mais direta, como as obras nº 7, em 31 de maio, ou nº 12, em 9 de junho, são mais evidentes, comentando como na primeira a marca de 22.047 mortes no Brasil em 66 dias de pandemia.

foto: Ricardo Hantzschel (2020)
http://www.instagram.com/rhantzschel


O que vêm à frente está em aberto. Uma nova série – Encaixes iniciada em 10 de julho parece em articulação. Explora o mundo exterior, as ruas da cidade. Marcada por perspectivas distorcidas, pontuadas por postes, placas de trânsito, grafites e adesivos, São Paulo surge entre paisagem “em reconhecimento” e paisagem “nova”. Uma cidade agigantada pela perspectiva acentuada, em contra-plongée, sob raios de um sol forte, do qual é necessário por vezes esquivar-se na tentativa de ver.




Na última hora, salvo por Lady Filmer

FotoPlus #38 – Junho 2019

Há dez anos, a exposição Playing with pictures: the art of Victorian photocollage, organizada em 2009 pelo Art Institute of Chicago, com curadoria de Elizabeth Siegel, apresentava um dos mais extensos panoramas sobre uma prática vernacular vista até algumas décadas como mera curiosidade. Um entre tantos divertimentos realizados predominantemente por mulheres de classes abastadas inglesas, a fotocolagem ganha então uma dimensão inesperada. Entre os praticantes, a mais conhecida é Lady Mary Georgina Filmer (1838-1903), que produziu vários álbuns com obras em aquarela, desenho e fotografias.

Lady Mary Filmer, ou apenas Lady Filmer, tinha sua produção referenciada há muito, como fez Naomi Rosenblum em A history of women photographers (1994, Abeville Press). Contudo Rosenblum, embora se esforce em propor elos com a fotomontagem moderna produzida 50 anos mais tarde ou com a prática surrealista, não consegue estabelecer o vínculo mais importante: a sua inserção na cultura visual do período. Mais oportuna seria a abordagem de Geoffrey Batchen, em Each wild idea (2000, MIT Press), no ensaio Vernacular photographies, que cita essa produção em sua análise sobre álbuns de retratos.
 


S.T (1864 ca), aquarela e colagem (28,6 x 22,9 cm),
acervo The University of New Mexico Art Museum.
Reproduzida em Rosenblum (1994, 2010, 3ª ed)

O catálogo da mostra e o livro Each wild idea estão disponíveis na Biblioteca de Fotografia / IMS Paulista. A palestra proferida por Siegel, na montagem da mostra em Nova York, está disponível no site do Metropolitan Museum  (página da exposição).

Marcelo Greco: falando de livros

FotoPlus #51 – Julho 2020


Abrigo, publicação mais recente do fotógrafo pela Editora Origem, associada a Rios.Greco, é antes um pretexto para retomar aqui o conjunto de livros editados por Greco nos últimos dez anos. Todos estão disponíveis para uma primeira visita através de registros em vídeo no site: marcelogreco.com.





Há algo de circular nos livros de Greco, ação que cria um encadeamento hipnótico. Para mim, por muito tempo, não era possível deixar de associar à obra um fluxo de imagens da cidade, noturnas, esquivas, que se tornavam como uma marca autoral. Mas, à frente de temas ou estratégias mais evidentes, outros traços parecem enredar-se em nós ao folhear estas obras. Um, que para muitos poderia representar aspecto menor, surge como agente de sutil sedução. Aqui e ali, algumas imagens se repetem como gatilhos ao longo das edições. Em geral, encontros visuais, como fantasmas noturnos (a ladeira no Sumaré, talvez), como imagem em relance. O furtivo, ou algo de furtivo, surge nessas cenas noturnas (ou ilusivamente noturnas). Veja em A sombra da dúvida, de 2016, imagens recorrentes, traçando seus fios entre as obras. Por vezes com força; outras, de modo sutil.

Outro aspecto que merece destaque é a construção visual recorrente nas imagens de Greco, que parece elaborar imagens em camadas. Às vezes, como sobreposições – em Abrigo, por exemplo, em chave onírica como o cavalo que surge sobreposto à paisagem. Aqui, talvez como estratégia de reflexo especular, ou então, em processo adicional, como sombras projetadas sobre muros, arbustos replicados, sobrepostos, ao final do livro. Em Brasília (Schoeler), lançado em 2011, o recurso de camadas fica mais evidente através das imagens da cidade, que surge mesclada, em fusão, com o vidro molhado da janela do ônibus que percorre as ruas. Nisso lembra também o uso regular do desfoque, distante contudo do recurso para destacar algum ponto da imagem, mas valorizando a superfície que se funde ao conjunto como massa visual.
 
Abrigo não deixa de fazer parte desse longo fluxo de imagens de cidades, esquivas, quase sempre em preto e branco. As imagens monocromáticas dominam o conjunto de livros, embora no ensaio Tempos misturados fique evidente que a cor não é um impeditivo para Greco, que chega a um resultado igualmente coerente e evoca mesmo o uso cromático de Luiz Braga, em sua Belém.

O título da obra é contraponto conceitual desejado pelo autor. Nesse aspecto, essa sedução, construída como refúgio, é algo novo que parece escapar ainda à obra. Imagens da série Helena, em si tema de livro homônimo de 2019, parecem distante ainda da potência construtiva das fotografias de um mundo exterior, talvez por estarem ainda muito próximas, como vivências em processo.
 
Abrigo, como outros livros de Greco, explora um formato de livro de imagens na chave do portfólio clássico, praticado a partir de meados do século passado. Em casos anteriores, surge de modo eficiente, como  em Internal affair (2014) ou A sombra da dúvida (2016), ao qual Abrigo deve muito, como edição e seleção de imagens. Talvez, a ênfase dada ao espaço vazio, ao “branco” das páginas, fosse mais bem sucedida em uma edição em formato maior. Nesse aspecto, Abrigo tem algo de obra de passagem, que nos faz olhar para trás e descobrir o conjunto da produção, e ao mesmo tempo desejar o próximo.