Na última hora, salvo por Lady Filmer

FotoPlus #38 – Junho 2019

Há dez anos, a exposição Playing with pictures: the art of Victorian photocollage, organizada em 2009 pelo Art Institute of Chicago, com curadoria de Elizabeth Siegel, apresentava um dos mais extensos panoramas sobre uma prática vernacular vista até algumas décadas como mera curiosidade. Um entre tantos divertimentos realizados predominantemente por mulheres de classes abastadas inglesas, a fotocolagem ganha então uma dimensão inesperada. Entre os praticantes, a mais conhecida é Lady Mary Georgina Filmer (1838-1903), que produziu vários álbuns com obras em aquarela, desenho e fotografias.

Lady Mary Filmer, ou apenas Lady Filmer, tinha sua produção referenciada há muito, como fez Naomi Rosenblum em A history of women photographers (1994, Abeville Press). Contudo Rosenblum, embora se esforce em propor elos com a fotomontagem moderna produzida 50 anos mais tarde ou com a prática surrealista, não consegue estabelecer o vínculo mais importante: a sua inserção na cultura visual do período. Mais oportuna seria a abordagem de Geoffrey Batchen, em Each wild idea (2000, MIT Press), no ensaio Vernacular photographies, que cita essa produção em sua análise sobre álbuns de retratos.
 


S.T (1864 ca), aquarela e colagem (28,6 x 22,9 cm),
acervo The University of New Mexico Art Museum.
Reproduzida em Rosenblum (1994, 2010, 3ª ed)

O catálogo da mostra e o livro Each wild idea estão disponíveis na Biblioteca de Fotografia / IMS Paulista. A palestra proferida por Siegel, na montagem da mostra em Nova York, está disponível no site do Metropolitan Museum  (página da exposição).

Marcelo Greco: falando de livros

FotoPlus #51 – Julho 2020


Abrigo, publicação mais recente do fotógrafo pela Editora Origem, associada a Rios.Greco, é antes um pretexto para retomar aqui o conjunto de livros editados por Greco nos últimos dez anos. Todos estão disponíveis para uma primeira visita através de registros em vídeo no site: marcelogreco.com.





Há algo de circular nos livros de Greco, ação que cria um encadeamento hipnótico. Para mim, por muito tempo, não era possível deixar de associar à obra um fluxo de imagens da cidade, noturnas, esquivas, que se tornavam como uma marca autoral. Mas, à frente de temas ou estratégias mais evidentes, outros traços parecem enredar-se em nós ao folhear estas obras. Um, que para muitos poderia representar aspecto menor, surge como agente de sutil sedução. Aqui e ali, algumas imagens se repetem como gatilhos ao longo das edições. Em geral, encontros visuais, como fantasmas noturnos (a ladeira no Sumaré, talvez), como imagem em relance. O furtivo, ou algo de furtivo, surge nessas cenas noturnas (ou ilusivamente noturnas). Veja em A sombra da dúvida, de 2016, imagens recorrentes, traçando seus fios entre as obras. Por vezes com força; outras, de modo sutil.

Outro aspecto que merece destaque é a construção visual recorrente nas imagens de Greco, que parece elaborar imagens em camadas. Às vezes, como sobreposições – em Abrigo, por exemplo, em chave onírica como o cavalo que surge sobreposto à paisagem. Aqui, talvez como estratégia de reflexo especular, ou então, em processo adicional, como sombras projetadas sobre muros, arbustos replicados, sobrepostos, ao final do livro. Em Brasília (Schoeler), lançado em 2011, o recurso de camadas fica mais evidente através das imagens da cidade, que surge mesclada, em fusão, com o vidro molhado da janela do ônibus que percorre as ruas. Nisso lembra também o uso regular do desfoque, distante contudo do recurso para destacar algum ponto da imagem, mas valorizando a superfície que se funde ao conjunto como massa visual.
 
Abrigo não deixa de fazer parte desse longo fluxo de imagens de cidades, esquivas, quase sempre em preto e branco. As imagens monocromáticas dominam o conjunto de livros, embora no ensaio Tempos misturados fique evidente que a cor não é um impeditivo para Greco, que chega a um resultado igualmente coerente e evoca mesmo o uso cromático de Luiz Braga, em sua Belém.

O título da obra é contraponto conceitual desejado pelo autor. Nesse aspecto, essa sedução, construída como refúgio, é algo novo que parece escapar ainda à obra. Imagens da série Helena, em si tema de livro homônimo de 2019, parecem distante ainda da potência construtiva das fotografias de um mundo exterior, talvez por estarem ainda muito próximas, como vivências em processo.
 
Abrigo, como outros livros de Greco, explora um formato de livro de imagens na chave do portfólio clássico, praticado a partir de meados do século passado. Em casos anteriores, surge de modo eficiente, como  em Internal affair (2014) ou A sombra da dúvida (2016), ao qual Abrigo deve muito, como edição e seleção de imagens. Talvez, a ênfase dada ao espaço vazio, ao “branco” das páginas, fosse mais bem sucedida em uma edição em formato maior. Nesse aspecto, Abrigo tem algo de obra de passagem, que nos faz olhar para trás e descobrir o conjunto da produção, e ao mesmo tempo desejar o próximo.

Fotografia falada: conversando cara a cara em tempos pandêmicos

Um depoimento, como balanço inicial, sobre impactos da pandemia do Coronavírus (2020) nas dinâmicas do debate e da difusão da cultura fotográfica no Brasil

FotoPlus #50 – Junho 2020

A seu modo, o fenômeno foi percebido por todos. Sinais ocorreram aqui e ali, persistentes; traço distintivo de grandes modificações que surgem como constatação consciensiosa. Consequência direta do isolamento social na tentativa de controle da pandemia, havia uma demanda pela conversação. Os meios estavam ali em uma diversidade de formas e possibilidades. E, surpresa, os serviços de internet, de modo geral, responderam melhor à demanda do que a estrutura médica brasileira.

Este relato é um balanço provisório dessa experiência no campo da fotografia no Brasil entre o final de abril e maio de 2020. Um relato de campo que procura delinear aspectos iniciais dessa tendência, a partir do impacto sobre o projeto documental FotoPlus. Segue assim antes como depoimento do que uma investigação em profundidade.

A fala, a conversação, certamente, foi estimulada por um canal de grande uso no Brasil, o Whatsapp, em seus grupos, de temáticas as mais diversas. Grupos de fotógrafos e agentes culturais, formalmente constituídos ou não, que acabaram estabelecendo um chão comum para as ações em análise. Quase certo, esse contexto inicial está interligado a serviços similares como Telegram e às redes sociais de modo geral. Fica em aberto por enquanto o papel de outro veículo como os podcasts, mas aqui surge um traço distintivo: a fotografia falada entendida como uma conversa cara a cara, em que o contato facial é aspecto distintivo. Fala e imagem, olho no olho, conversa torta, imagem precária, conexões as vezes instáveis (em contraponto ao Zoom ou outras plataformas alternativas com StreamYard, com recursos de compartilhamentos de arquivos e telas), são traços que tem uma certa centralidade nesse fenômeno.

Antes, os números da internet

Qualquer avalição exige uma referência, marcos iniciais. É possível, por exemplo, de forma improvisada, a qualquer um estabelecer um ranking. Quais são os perfis no Instagram, rede social de maior destaque entre nós nos anos recentes, com mais seguidores? Essa pergunta pode ser respondida, ainda que isso sempre dependa das reações e ações dos seguidores e o impacto sobre o “algoritmo” da contemporaneidade. Todos os números indicados tomam como referência o dia 21.06.2020.

Comecemos, para não esquecermos da fala como interesse principal, pelo perfil do podcast Papo de Fotógrafo – “O podcast de fotografia mais divertido do Brasil” como indica, que se apresenta como principal do setor: 56,5 mil seguidores. Vamos manter aqui essa unidade – milhares de.. e não empregar o indicador usual “K”.

Entre as instituições e empresas do setor  cultural atuantes em fotografia, os números estão em faixa superior: Instituto Moreira Salles – 189 mil – e o Itaú Cultural – 210 mil. No entanto, é bom lembrar que ambos atuam em campo ampliado, da literatura ao cinema, por exemplo. Vale então checar o Museu da Fotografia Fortaleza, com 39 mil seguidores.  

Como referência às grandes instituições culturais, por exemplo, MASP, Instituto Inhotim, MAM São Paulo e MAM Rio respondem respectivamente por 513, 320, 184 e 64 mil seguidores. Nesse contexto, o desempenho do Papo de Fotógrafo é significativo. Numa avaliação pessoal, fico surpreso que a impressa especializada tenha desempenho inferior. Assim, Fhoxonline com 23 mil seguidores ou a revista Fotografe melhor, 18,9 mil, não constituem patamar mais relevante. Aqui, é a revista Zum, editada pelo IMS, o perfil em destaque com 32,6 mil seguidores.

Os perfis de fotógrafos, autores de maior destaque, apresentam números mais expressivos. Nomes de uma geração mais velha como Bob Wolfenson e J. R. Duran registram 176 mil e 113 mil seguidores, respectivamente. São autores com presença distinta, e talvez, Duran no Twitter, com 148 mil seguidores, seja um perfil mais ativo, contudo como comentarista humorado sobre o cotidiano político brasileiro. Ainda assim Clicio Barroso, com 13,9 mil seguidores no Twitter, domina o pedaço, em dinâmica próxima (13,8 mil no Instagram).

Outros autores, da mesma geração, como Cristiano Mascaro e Márcio Scavone, têm patamares  – bem distantes – mas similares com 7.765 e 9.835 seguidores. Seria oportuno checar outros agentes, como o curador e fotógrafo Eder Chiodetto com 15 mil seguidores ou o fotógrafo Claudio Edinger com 27 mil. Vik Muniz é exceção, com 254,4 mil seguidores, mas seu perfil é eclético, orientado mais pela descoberta visual e “gastronômica”. Ah, em tempo,  Sebastião Salgado é nome recente, desde o início de maio, com 89,9 mil seguidores, mas essa presença foi causada por sua campanha de proteção aos povos indígenas (em tempo, assine).

Projetos de grande centralidade na difusão da imagem como os festivais, que se espalham de Norte a Sul, tem presença no Instagram bem heterogênea. FotoRio, por exemplo, tem 2.139 seguidores. Foto em Pauta, como veremos adiante, tem maior presença, com 14,1 mil seguidores, como também Paraty em Foco, com 10,5 mil seguidores, ou Valongo Festival, com 12 mil.  A baixa presença no Instagram é aparentemente traço regular no setor, seja para FestFoto ou Festival de Fotografia de Paranapiacaba, velhos ou novos agentes. Isso indica, porém, apenas uma resposta lenta às dinâmicas das redes sociais. Em sua totalidade, um balanço documental indicaria que em grande parte os festivais têm presença na internet de modo irregular, com pouca abrangência sobre a própria produção em perspectiva histórica, o que surpreende frente ao protagonismo que apresentam (e reivindicam) na difusão e debate no panorama da fotografia brasileira.

Todos estão bem longe de nomes com abrangência internacional como o jogador Neymar, entre os grandes players internacionais, com 139 milhões de fãs. Estão também bem distantes de um fenômeno pouco conhecido da fotografia brasileira. O jovem Gilmar Silva, a partir de Cascavel, na região metropolitana de Fortaleza, aos 27 anos, a seis atuando na área, tem 1 milhão de seguidores no perfil gilmarphotos. Sinal, talvez como a dica dada pelo Papo de Fotógrafo parece revelar, de que humor seja um traço importante nas conversas das redes. Suas postagens diárias oferecem orientações para fotógrafos, sugestões para pose, iluminação… , sempre marcadas pelo humor, quase nonsense. Há muito a ser descoberto assim na presença da fotografia nas redes sociais, em setores específicos, às vezes mesclando campos como no caso de “Lucas Lapa” (lucaslapaphotopro), como distribuidor comercial, com 165 mil seguidores, que mereceriam análise.

Se uma pesquisa informal, que qualquer um pode fazer no Instagram, apresenta esse panorama, é oportuno dar uma olhada em portais de análise do segmento. Mas, primeiro, é preciso desvendar qual o universo geral de que estamos falando. Portais especializados, como DataReportal, são ferramentas impressionantes, numa primeira apreciação, e valem a visita. Trazem mais do que meros dados brutos, mas interpolações com perfis sociais, acessos a meios etc.

Conforme dados do portal DataReportal, em janeiro de 2020 (já disponíveis dados de fevereiro –https://datareportal.com/reports/digital-2020-brazil), para uma população de 211 milhões de brasileiros, 150,4 milhões são usuários da internet, sendo 140 milhões usuários ativos em redes sociais. Enfim, um número para refletir. O Instagram “era” então a quarta plataforma mais usada, após, na ordem decrescente, You Tube, Facebook e Whatsapp. O total de usuários Instagram – 77,0 milhões – correspondem a 44% da população com mais de 13 anos, sendo composto por 40,8% de público masculino.

 O portal Hypeauditor é outra ferramenta útil e complexa para um estudo específico com números atualizados em tempo real. E, mais do que totais, inclui índices como engajamento de seguidores (ER), com likes etc.

 Entre as 50 posições tops do Instagram para o Brasil em junho, destacam-se perfis como  os das câmeras gopro com 1,3 milhão de seguidores no país, de um total de 17,2 milhões em escala mundial. GilmarPhotos não está “tão mail” assim! A NASA, claro, é campeã com 4,6 milhões de seguidores, parte do universo de 59,3 milhões em escala global,  Aqui, perfis como IMS, Bob Wolfenson e J. R. Duran podem ser perfilados agora quanto ao engajamento de usuários, que varia entre 0,17% do total para o IMS a um campeão 1,63% para Bob Wolfenson, seguido por 0,31% para os seguidores de Duran.

No quadro geral do top 100 do Instagram, depois de separarmos – entre os classificados em “photography” (categoria em si problemática) – os atores e modelos, bem como os perfis de lifestyle e música – ufa!, quantos! – ficamos ainda com NASA e National Geographic em destaque. A velha revista na verdade desdobra-se entre natgeotravel (com 1,3 milhão de seguidores brasileiros para um total de 39,1 no mundo), natgeoadventure e natgeointhefied. As imagens espaciais estão divididas entre mais perfis, além da NASA, como NasaHubble e ISS, para International Space Station. Sim, ainda resta o GoPro. Mario Testino é o fotógrafo que aparece em destaque, uma surpresa digamos, com 511,6mil seguidores brasileiros do total de 4 milhões em escala global.

GilmarPhotos surge agora com dados mais claros, com 1,1 milhão de seguidores e engajamento dos usuários em 2,89%. No rank Brasil, Gilma’Silva Fotografia está na posição 2.482 e no rank global em 15.795. Na categoria “photography in Brazil” (em sua diversidade), Gilmar está muito bem na posição 68. O portal traz dados adicionais. Gilmar como “Mister GSP” tem meros 56,2 mil seguidores no You Tube, com apenas 23 vídeos, sinal claro de perfis de gerações mais novas. No TikTok, contudo, GSP surge com 345,4 mil seguidores, com excepcional crescimento de 36% em 30 dias – “exccelent” nas palavras do portal, com 5 posts por semana (“good”) e, imagine, um engajamento (ER) de 17,1% (classificado, porém, como mero “good”).

Primeira fase: a pandemia: março de 2020

As primeiras semanas, marcadas pelo impacto da quarentena e “tomada de consciência” passo a passo frente às suspensões e cancelamentos que se impunham, foram marcadas na perspectiva do fenômeno em análise por uma dispersão. Para uma primeira avaliação do impacto geral sobre o quadro da produção, difusão e debate da fotografia no Brasil durante a quarentena, é possível sugerir a consulta à base de eventos FotoPlus, através, de forma simples, do termo de busca “pandemia” para um levantamento inicial.

Quanto à uma resposta mais ágil ao isolamento foram presenças já estabelecidas nas redes que se destacam, como digamos o “You tuber” carioca Renato Rocha Miranda. Fotógrafo por anos da Rede Globo,  há alguns anos desenvolve sua produção no You Tube, voltada ao ensino, ao marketing etc. A partir de 2 de abril  Rocha Miranda produziu lives diárias, no You Tube, Instagram e Facebook, no projeto COMVIDA.

Empreendores diversos, que tiveram grandes eventos suspensos como feiras, seminários etc, em especial para segmentos de reportagem social, casamento, por exemplo, foram outros agentes relevantes. Assim, o recurso a canais das redes sociais, já usuais, ganharam dinamismo  nos casos do Grupo Fhox ou Wedding Brasil. Os coordenadores da revista Fhox, por exemplo, estabeleceram a Semana de Apoio e Suporte na Fotografia, também em lives diárias, aqui pelo Instagram, ainda em andamento. O mesmo fizeram os organizadores do Wedding Brasil 2020, programado para 28 de abril, que, além das lives diárias, criaram uma versão online do evento – At home (28 a 30 de abril).

De forma geral, essas ações partilhavam de circunstâncias como impacto em eventos programados e a experiência audiovisual nas redes, quase sempre voltada ao campo de ensino. Talvez, em parte, essas mesmas condições justifiquem o desempenho seguinte apresentado pelo Foto em Pauta (MG), após a suspensão imediata nos dias iniciais da montagem do 10º Festival de Fotografia de Tiradentes, com abertura programada para 18 de março.

A mesma ruptura ocorreu no mercado de arte, parte privilegiada do mercado de bens de luxo, assombrado pela interrupção do circuito internacional de feiras, um dos pilares de sustentação das grandes galerias brasileiras, e, finalmente, o cancelamento da edição 2020 da SP-Arte, programada para 1 a 5 de abril. Os desdobramentos no mercado e no sistema das artes visuais demandarão estudos por longo período. Embora fuja do recorte desse ensaio, registre-se o conjunto disperso de ações iniciais. Algumas galerias como a Zipper (SP) apresentaram de imediato visitas virtuais em sistema de visão 360 graus. O recurso, já conhecido, mas demandando investimento, não se espalhou. Curiosamente, as visitas virtuais nos meses seguintes ganharam a forma curiosa de páginas convencionais em HTML.

Abril, no casos dos agentes mencionados, será marcado por ações com uso de lives para entrevistas, conversas etc, e visitas online a ateliês. O MAM São Paulo é um exemplo dessas visitas, prática corrente em várias galerias locais como a Millan, por exemplo. Soluções nesse segmento surgem em formas diversas. Como o projeto Artista fala com artista¸ iniciado já em meados de março pela pequena Bianca Boeckel Galeria, cujos artistas representados comentavam obras dos demais participantes do grupo. 

O mercado de arte local, apenas para registro, procurou estabelecer formas de apoiar artistas representados criando ações de venda a menor custo como o projeto Partilha, e, nos meses seguintes, testar formas online, à exemplo do mercado externo, como a feira not cancelled, entre 10 de junho e 8 de julho, através de plataforma internacional. Grupos de artistas visuais por seu lado procuraram reimaginar “um modelo econômico para as artes” como o Projeto Quarantine. E de forma geral, restou aos serviços educativos dos museus pensar a cada semana novas formas de estabelecer dinâmicas com os públicos online, experiência que seria oportuna para pensar a médio prazo um protagonismo mais revelante para estes setores no planejamento institucional.

No que interessa aqui, é relevante como surgem projetos de conversação, de lives, por essas galerias (afinal, os museus e instituições foram pouco consistentes nessa resposta). Destaquem-se programas estruturados como aquele promovido pela Galeria Superfície (SP), com sua programação Ao vivo com¸ iniciada em 24 de março, com duplas de artistas convidados. Ou, no quadro carioca, a Mul.ti.plo, com Conversa com artista, trazendo o crítico Paulo Sérgio Duarte, em seus canais no Instagram e no You Tube, com vídeos diversos. Semanas depois, no início de abril, é a vez da Galeria Lume, com o projeto Conversa com artista.

Segunda fase: abril: de norte a sul

Abril trouxe um panorama de dinâmica intensa e dispersiva. O formato live, via Instagram de início, tem o protagonismo.

O circuito de fotografia social, impactado pela suspensão de eventos, parece ganhar visibilidade “nos algoritmos”. Com prática estabelecida no uso das redes para divulgação de curso, como parte da dupla fonte de renda – cobertura de evento e oferta de workshops, os profissionais parecem investir nas lives em formas diversas tanto leituras de portfólios quanto cursos online, em geral em canais mais tradicionais como You Tube (por exemplo, entre tantos, Camila Vedoveto, em Primavera do Lestes, MS).  A cobertura realizada pelo projeto documental Fotoplus parece indicar, porém, grande presença de profissionais do Rio Grande do Sul, mercado significativo, com eventos regionais, que foram suspensos.

O circuito cultural, apenas em segundo momento, parece descobrir a ferramenta. Começam a pipocar ações, com grande destaque para a região Nordeste, muito antes, e de forma variada, que no Sudeste.

De certa forma, o período pode marcar a última virada do Instagram sobre a presença do Facebook como meio de difusão no panorama da fotografia no Brasil.  A cada dia tornava-se gradualmente difícil registrar os eventos, pois era necessário driblar o algoritmo para manter uma cobertura extensa.

Seria importante registrar que em abril destacam-se mais iniciativas individuais, de jovens fotógrafos ou pesquisadores, que promovem, a seu jeito, longas séries de lives, trazendo suas referências locais. Um exemplo, em Fortaleza, para Rastros Periféricos, de Stephanie Nojosa, ativa diariamente entre março e abril. Ou, no sul, em Porto Alegre, também como iniciativa individual, a série Pega na visão, de Emmanuel Denaui. O modelo, nesses casos, parece se caracterizar pela produção contínua, diária, quase um balanço de comunidades de profissionais. Quase previsível, muitas iniciativas similares, acabam esgotando-se com o esforço intensivo de produção.

De qualquer forma, é possível especular que essas ações e sua difusão pelas redes constituíram em si um catalisador. Efeito em que profissionais, com ações anteriores nos segmentos de ensino e difusão, parecem ter se inspirado e procurado então ocupar espaço (perdido).

Necessário lembrar que surpreendentemente os serviços de acesso a internet, de um modo ou outro, funcionaram. Em raros casos, com a crescente explosão de lives em horários concentrados, geraram suspensão ou adiamento de programas procurando driblar problemas de conexão e de dispersão de públicos. De modo secundário, parece ter ficado flagrante que usuários dos sistemas Android e IOS tinham interfaces Instagram com recursos distintos, como neste último a possibilidade de inserção de fotos.

Importante registrar que até esse momento essa produção de conversas via lives acabou constituindo um conjunto efêmero, pois a plataforma Instagram apenas preservava os vídeos por 24 horas. O acesso ao serviço IGTV, com armazenamento de vídeos, torna-se de uso regular apenas em maio. Esse aspecto, bem como a precariedade de produção das lives via Instagram acabaram dando espaço crescente a outros sistemas como a plataforma Zoom, sem conexão porém com as redes sociais. Contudo, outras soluções terão lugar com serviços de streaming com acesso simultâneo aos Facebook e You Tube, como StreamYard, que será adotado, por exemplo, pelo evento FotoSururu (Maceió). Esta solução será um dos aspectos que caracterizará a nova fase do fenômeno das lives, trocando um meio “quente” por sua imediatez e precariedade como o Instagram, por meios mais formais, controlados.

Terceira fase: maio: normatização em andamento ?

Maio poderia ser caracterizado por duas dinâmicas, de naturezas distintas. Por um lado, uma explosiva resposta da comunidade fotográfica, de norte a sul, que desenvolve, desde final de abril, campanhas de vendas de imagem com renda dirigida às mais diversas entidades de apoio a grupos em situação de risco. Entre elas: 150 fotos para São Paulo, Art Challenge cestou, 20×20 Galeria Solidária de Fotografia, POA 150 fotos, Fotógrafos por Minas, Fotografias pelo Ceará e o projeto Quarentena Books. Por outro lado, as lives, em algumas dessas iniciativas, têm papel significativo. Em algumas, de forma muito dinâmica, às dezenas; em outras, de forma mais estruturada.

Maio é marcado  também pela presença de programações por parte de agentes com presença prévia no segmento de educação e cultura. Destacam-se assim, além de projetos de festivais regionais como FotoSururu, ações de coletivos como a série Nitro ao vivo, do coletivo mineiro NitroImagens, ou instituições como Casa da Photographia(Salvador), Ateliê Oriente (RJ), Circulo.da.Imagem (Natal), este último intensamente ativo desde abril. Alguns autores mantiveram-se em ação desde estão, como a Escola Baiana de Fotografia, em sua prática marcada pelo uso de sessões de longa duração.

Festivais de porte como Foto em Pauta apresentam então presença crescente e mais articulada entre canais Facebook e You Tube, ou, em escala menor, o Festival de Fotografia de Paranapiacaba, a partir de 15 de maio, que igualmente teve de repensar sua edição, marcada por um programa orientado para os temas do meio ambiente e dos protagonismos feminino e negro na fotografia.

Seria relevante lembrar nesse panorama sobre a “fotografia falada”, enquanto conversa face a face, que o modelo discursivo baseado no formato palestra, embora não dominante, apresentou ocorrências que merecem atenção. Um exemplo é a programação semanal do paulistano Marcelo Greco. Em parte, um desdobramento de sua prática como tutor, coordenador de grupos de estudos, os encontros acabaram por constituir um rico repertório sobre as referências pessoais, em especial autores de fotolivros japoneses.

Junho, novamente, e além

O uso crescente das lives, em diversos canais, agora de forma mais estruturada, não conseguiu até agora driblar a dispersão de públicos. Um traço comum, o da crescente participação de convidados, regularmente circulando em um “circuito” nacional entre nordeste e sudeste, acabou provavelmente por agravar a disputa por audiência.

O impacto do fenômeno sobre um projeto documental dedicado à fotografia no Brasil, como FotoPlus, ocorreu em desdobramentos. Numa fase inicial, em mapear e driblar, se possível, os algoritmos, e no caso, registrar as lives, via captura de telas. Numa segunda fase, em garantir abrangência da cobertura, em detrimento da profundidade, procurando antes caracterizar tendências e distribuição regional. A difusão do serviço IGTV garantiu alguma permanência desses eventos. Assim os registros em FotoPlus trazem os links disponíveis, ainda que do ponto de vista de permanência não possam ser caracterizados como estáveis. A pandemia, a seu modo, foi a forma de impor ao projeto uma atenção mais regular a esse gênero de produção visual, até então considerado como voláteis.

Mas, encerrando, sobre o quê tanto se fala ao longo dessas conversas? AInda que de início a pandemia e os desdobramentos sobre a prática profissional surjam em primeiro plano, trata-se de certo modo de uma apresentação. Em muitos casos, embora os convidados sejam partícipes de seus grupos, entram em cena como referências conhecidas. Falam de si, como profissionais, como em uma terapia também. Quase certo falam como se pela primeira vez estivesse em questão a produção de uma grande conversa, um momento novo na cultura.

Klaus Werner: uma vida entre imagens. 1921-2018

FotoPlus #49 – Maio 2020


Santista: linha de produção de lençóis: mulher monitora grande máquina.
[Osasco], década de 1960 ca
Acervo Klaus Werner.

Acervo Fotográfico Klaus Werner

http:///www.projetoklauswerner.org


Está no ar o site do projeto dedicado ao fotógrafo Klaus Werner (AL, 1921-BR, 2018), desenvolvido pela AEP, com suporte do Edital de Apoio à Digitalização de Acervos – Secretaria Municipal de Cultura/PMSP. Contando com galeria virtual e guia do acervo digitalizado sobre 7 mil das 130 mil imagens remanescentes, é possível ainda baixar os catálogos produzidos nessa fase.


Klaus Werner: uma vida entre imagens. 1921-2018

Klaus Werner, alemão, nascido em Düsseldorf em 1921, instala-se no pós-guerra em Osasco, então bairro paulistano, como fotógrafo. A partir das reportagens sociais e da pequena loja da Foto Nico do início da carreira torna-se, antes de tudo, fotógrafo industrial. Por três décadas registra parte do explosivo crescimento do setor: do boom da década de 1950 à expansão econômica dos anos 1970. No início da década de 1990 radica-se com a família no litoral sul, na Praia Grande, ativo ainda, em nova circunstância, até sua morte em 2018.


A viagem

O pequeno livro manuscrito é direto: a imagem da capa revela o final do relato: a Baía da Guanabara vista a partir do vapor Santarém. O diário de viagem – Reise Tagebuchlein: Hamburg Rio de Janeiro – tem início em 27 de abril de 1948, manuscrito à lápis, reservando espaço para as imagens que se somam pouco a pouco à narrativa. Acompanhado do irmão, seu autor registra a festa de despedida, bem como as dificuldades do percurso e a fiscalização severa pelos exércitos de ocupação ao longo do trajeto entre a Berlim do pós-guerra e o porto em Hamburgo, sob a tensão ainda da demora preocupante da bagagem com as câmeras enviada pela mãe. Pouco se sabe dos momentos vividos nos últimos anos turbulentos do conflito encerrado em 1945, apenas que o pequeno núcleo familiar, formado também ainda pelo irmão Peter, a irmã Úrsula e a mãe Susy, sobreviveu.

O diário revela de forma indireta a prática da fotografia. Ao longo da viagem, em porto espanhol, o autor comenta a parada do vapor e a saída dos irmãos em busca de material fotográfico. Papel e sais para fixação são obtidos em troca de um dos equipamentos trazido para um eventual início de vida como profissional. O interesse pela fotografia, como indica outro raro documento um cartão de visita, já constituía atividade comercial para sobreviver. Ilustrado por uma câmera que registra a casa, junto ao cruzamento da Bitter Strasse com Bachstelzen Weg, e acompanhado do número de telefone, o cartão permite identificar a cidade de Berlim, provavelmente antes do final da grande guerra, quando um espaço de trabalho fixo e um telefone ainda eram possíveis.

A proposta de trabalho aos irmãos em indústria na periferia oeste de São Paulo possibilitou a saída do país em reconstrução. A entrada do escritório da Brazilian Military Mission, na unidade em Berlim possivelmente, surge com destaque em fotografia no diário, marcando a importância simbólica do lugar ao viajante. Isso é tudo, por ora, sobre o passado. Em 27 agosto de 1948, Klaus Werner e seu irmão chegam ao Rio de Janeiro.

Para ver o texto completo , baixe o arquivo em pdf.

Um sobrevoo sobre São Paulo ao final da década de 1920

FotoPlus #48 – Abril 2020

Embora em quarentena o panorama fotográfico no Brasil apresenta grandes contrastes. Por um lado, galerias e museus fechados, lançamentos suspensos etc.; por outro, grande movimentação online, com lives em explosiva difusão, de entrevistas a papos comportamentais, além de cursos não presenciais em todos os formatos, origens e autores. Ao menos aqui, os centros regionais parecem ganhar espaço sobre os polos do Sudeste e talvez assim acabem por iniciar uma nova dinâmica intraregional no país.

Algumas raras instituições do setor conseguiram dar as primeiras respostas propondo ações de fomento emergenciais como Itaú Cultural e IMS, além de raríssimas ações governamentais locais frente à completa omissão do governo federal.

Como Giselle Beiguelman e Nathalia Lavigne comentaram em seus artigos na imprensa (FSP, 17.04.2020), há algo de caótico nessa dinâmica virtual e, sim, o completo fracasso das páginas Internet de quase todos os grandes parceiros. Basta ver o MASP com um site pouco consistente quanto à própria produção, sem qualquer projeto editorial que contemple difusão de acervo, ação educativa e experimentação, para não falar sobre o uso primário de suas redes sociais. Enquanto aqui o projeto visual é limpo, mas vazio de informação, outras instituições como o Itaú Cultural, apesar de apresentarem equipes editoriais próprias, adotam um projeto visual com intensa densidade de informações acessórias e dispersivas. Há muito por fazer e a quarentena parece uma oportunidade para invenção. Será que as coordenadorias desses serviços e os gestores ainda não descobriram o home office?

Enquanto isso: como sairão da quarentena os órgãos governamentais, enfim?


Um sobrevoo sobre São Paulo ao final da década de 1920: dica de leitura
(uma breve colaboração do autor quando pesquisador da instituição)


S.A.R.A. Brasil:
restituindo o Mapa Topográfico do Município de São Paulo

breve história da aerofotogrametria nas cidades do Rio e São Paulo na década de 1920

SARA Brasil - Logo - 1931
Logotipo da empresa italiana S.A.R.A. em papel timbrado, 1931.

“Quase 90 anos marcam a realização no Brasil das primeiras aplicações da aerofotogrametria em grande escala no âmbito da gestão urbana com a realização dos levantamentos das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Esta edição do Informativo AHSP, a partir da documentação custodiada transferida nos últimos anos, traça um primeiro painel sobre um marco da cartografia paulistana representado pelo Mapa Topográfico do Município de São Paulo, contratado pela municipalidade em 1928. A contribuição original desta edição é inserir essa produção no âmbito de iniciativas similares como a levada a cabo na antiga Capital Federal, na gestão Antônio da Silva Prado Júnior (1926-1930).

Essas iniciativas definem uma mudança de escala e alcance da aerofotogrametria no Brasil, bem como caracterizam modos de produção em parte distintos, com o emprego de restituidores automáticos no caso paulistano. Tal recurso introduziu ganho de produtividade efetivo no setor, respeitados todos os parâmetros de precisão, reduzindo equipes e tempo de produção.

Nessa aproximação a esse marco na cartografia paulistana do século XX foi possível também estabelecer uma cronologia mais detalhada sobre as ações da grande empreitada realizada empresa SARA Brasil e apresentar produtos remanescentes — fotos aéreas, fotomosaicos e cópias em tela transparente para reprodução das pranchas — em acervos paulistanos.”


Veja o artigo completo em duas versões:

  • HTML: no site do Arquivo Histórico Municipal / ArquiAmigos – com acesso aos mosaicos em escalas  1:1.000 e 1:5.000: Informativo do AHSP, ano 10, n.37, dez.2014
  • versão e-book formato PDF: site Internet Archive; disponível para download.

Arte contemporânea em diálogo com a tradição visual: Cardoso, Zocchio e Navas (São Paulo, 1887-2016)

FotoPlus #47 – Março 2020


Na edição de março de 2020 do Anais do Museu Paulista, um painel sobre obras dos artistas Patrícia Cardoso, Marcelo Zocchio e Thiago Navas que põem em questão a construção da imagética da cidade de São Paulo desde o século XIX.

https://www.revistas.usp.br/anaismp/article/view/156138

O artigo comenta em um primeiro momento ensaios visuais dos artistas contemporâneos Patrícia Cardoso, Marcelo Zocchio e Thiago Navas que tomam a cidade de São Paulo e suas representações como questão, em ações que tensionam aspectos como memória, autoria, autoridade e tradição visual.

É apresentado inicialmente um percurso historiográfico sobre a obra de Militão Augusto de Azevedo (Rio de Janeiro, 1837-São Paulo, 1905), produtor visual em destaque na reflexão operada naqueles ensaios. Surge ali como referência em diferentes graus e modos o Álbum comparativo da cidade de S. Paulo (1862-1887), o mais extenso conjunto imagético sobre a cidade ao final da década de 1880. Busca-se destacar como as imagens de Militão foram percebidas e mobilizadas no processo de construção de uma memória urbana local ao longo do século XX e, por fim, na própria constituição do campo da história da fotografia brasileira.

O artigo analisa nesse contexto ensaios visuais de Cardoso, Zocchio e Navas, comentando como operam sobre princípios estruturais como o recurso comparativo entre fotografias, as funções documentais, representacionais, etc. O artigo enfoca especialmente as temporalidades articuladas pela narrativas imagéticas no álbum de Militão e nas apropriações posteriores, e como uma potente reflexão sobre esses aspectos se realiza no segmento da arte contemporânea, permitindo expor as dinâmicas que submeteram a iconografia histórica local a agendas diversas.

Versos inspirados pela visão de uma câmera obscura (1747)

Máquinas de desenhar constituem um extenso conjunto de instrumentos, que reúne de pantógrafos a câmeras lúcidas, mas são as câmeras obscuras as mais conhecidas. Presentes até hoje na forma das câmeras buraco de agulha (pinhole), na fotografia estenopéica, constituem desde 1839 o modelo de base para o aparato de captação de imagens com a agregação de lentes: a câmera moderna.

Seu princípio é registrado desde a antiguidade clássica, mas é ao final do século XVI que ela começa a ganhar forma e emprego efetivo. Quase um século e meio depois, em 1747 surge em Londres um singelo panfleto de 16 páginas, impresso por John Cuff ([1708]-1[772], importante fabricante e comerciante de instrumentos ópticos, intitulado: Verses occasion’d by the sight of a chamera (sic) obscura (Versos inspirados pela visão de uma câmera obscura).

Reproduzido em: COKE, Van Deren. “One hundred years of photographic history”. Albuquerque: (University of New Mexico Press, 1975.

Embora sem autoria confirmada, o longo poema de 13 páginas atribuído a Cuff faz uma elegia ao instrumento. Ao final da edição, um anúncio detalhado apresenta a variedade de produtos à venda em sua loja, com destaque para os diversos modelos de microscópios, muitos com aperfeiçoamentos ou invenções por Cuff, como o microscópio aquático, desenvolvido para observação de espécimes marinhos. A seu modo, o folheto caracteriza um modelo da publicidade comercial do período.

O frontispício traz referência a poema de Ovídio (43 a.C-[18] d.C) com o verso inicial de Metamorphoses, poema longo escrito em 8 d.C, que traça um panorama da mitologia clássica: “In nova fert animus mutatas dicere formas corpora” (Minha mente está inclinada a falar de corpos transformados em novas formas.). Armado dessa intenção, e, de certa forma, em estilo, John Cuff elabora longo poema alegórico.

Heinrich Schwarz (1894-1974), filósofo e historiador da arte, é um dos poucos que comentaram esses versos. Schwarz foi um dos pioneiros no estudo da fotografia no campo da história da arte na década de 1920, curador,  e autor da primeira monografia em 1931 dedicada a David Octavius Hill (1802-1870). Em 1975, participa postumamente com ensaio An eighteenth-century english poem on the camera obscura, no livro editado por Van Deren Coke, em homenagem a Beaumont Newhall: One hundred years of photographic history (University of New Mexico Press, p.127-138) (clique para acessar versão online).

Schwarz, algo envergonhado, aponta o poema como texto pobre elaborado por um amador. No entanto, reproduz o poema integralmente, antecedido de um breve panorama sobre o instrumento. O autor comenta o anúncio e a oferta de câmeras obscuras por Cuff, das quais nenhum modelo remanescente é conhecido. Apresentada por Cuff entre seus “curiosos instrumentos ópticos”, em meio a lanternas mágicas, binóculos para ópera etc, ela é descrita brevemente: “A Câmera Obscura para exibição de vistas em proporções e cores naturais, junto como o movimento dos objetos vivos”.

Sobre o poema, existe uma versão homônima, editada em 2010 (Galle Ecco, 22p.) com comentários críticos. O texto, em sua forma original, é um duplo desafio. Primeiro, pela modelo alegórico empregado na elegia, da qual a inspiração em Ovídio tem alguma marca, com emprego de inversões entre sujeito e predicado, bem com uso peculiar de pontuação, muitas delas agora eliminadas. Segundo, pelo forma mesma da língua inglesa no século XVIII. Aqui fazemos uma adaptação livre da primeira estrofe, e, de outra, mais adiante, na página 7 em que Cuff comenta o desafio à pintura.

“Versos motivados pela visão de uma câmera obscura

“Diga, máquina extraordinária, quem te ensinou a desenhar?
E imitar a natureza com tal habilidade divina?
Os milagres de qual [lente] criativa
Surpreenderam com espanto as classes supersticiosas,
De tolos, nos tempos de (Francis) Bacon, e fizeram-se passar por bruxaria.
Produções estranhas! A fraca Razão transcenderam;
E todos admiraram, mas poucos podiam compreender
A causa escondida; o resultado que os homens claramente veem, compelidos pela
visão de teus mistérios a acreditar.”

(…)

“Como esse pintor se vangloriaria da arte do próprio lápis?
Quem poderia transmitir tais movimentos à obra?
Mas aqui você não tem rival na tua fama;
Apenas você para copiar o conjunto da Natureza,
Tão estritamente verdadeira parece a própria imagem
Em proporções corretas; cores fortes ou fracas;
Pela luz e sombra; sem as camadas da pintura:
Para animar a imagem e inspirar,
Tais Movimentos, conforme as Figuras podem exigir.
Do céu, como Prometeu, você rouba o fogo sagrado.”


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Como citar:

MENDES, Ricardo. “Versos inspirados pela visão de uma câmera obscura (1747)”. Fotoplus Boletim, n.46, 24 de fevereiro de 2020. disponível em: <http://fotoplus.com/duas”. Acesso em: … de … de …

Na imprensa, antes do lançamento: 1839

Fonte: The Talbot Catalogue Raisonné

Na imprensa, antes mesmo de ser anunciada!

Nada espantoso, afinal se Hippolyte Bayard (1801-1887) participa em exposição aberta em 14 de julho de 1839 com 30 imagens, trazendo cenas de natureza morta e arquitetura, um mês antes da apresentação oficial da daguerreotipia, por que não? Bayard, utilizando um processo positivo direto sobre papel desenvolvido por ele, estimulado pelo que se sabia então sobre os procedimentos de Daguerre e Talbot,  acaba por realizar a primeira exposição com imagens técnicas do gênero. O evento, em benefício das vítimas do  recente terremoto na Martinica, reunia diversos participantes com obras em pintura, desenho e escultura, como registra entre outros o jornal parisiense Le Constitutionnel, em 3 de agosto.

O interesse geral pelo assunto é expressivo. Jornais ingleses respondiam a essa demanda. Em 20 de abril do mesmo ano, The Mirror, periódico londrino traz na capa a reprodução de um desenho fotogênico, processo desenvolvido por Talbot. O encanto das imagens por contato de plantas diversas ou qualquer outro material que gerasse formas e texturas está ali, em tons marrons, mas transcrito através da xilogravura. O sistema adotado foi emulsionar os blocos de madeira e submetê-lo ao processo, sendo entalhados em seguida.

Uma semana depois é a vez de The Magazine ofScience and School of Arts, na edição de 27 de abril, trazendo 3 desenhos fotogênicos. O interesse parece persistir pois o mesmo jornal traria novas imagens em 4 de maio.

Para saber mais, veja o artigo de Larry Schaaf – Revelations & Representations, de 27 de maio de 2016, no site do projeto The Talbot Catalogue Raisonné, e aproveite para conhecer a coleção.

(publicado originalmente no FotoPlus Boletim nº 42, out.2019; versão revisada)

Deborah Willis encontra Roy DeCarava



Aqui vão duas dicas de leitura para o final de ano, dicas entrelaçadas, e com a vantagem dos livros estarem disponíveis online. Ambos tratam do universo da identidade e representação visual da comunidade afroamericana na segunda metade do século XX.

Deborah Willis (1948), organizadora de Picturing us:  African American identity in photography (1994, New Press) tem desenvolvido nos últimos 30 anos uma extensa investigação sobre fotógrafos negros estadunidenses. Em 1985 lançou sua obra documental Black photographers: 1840-1940: a bio-bibliography, que teria quatro anos depois, uma edição ilustrada.

Data de 2000 seu livro mais conhecido – Reflections in black: a history of black photographers: 1840 to the present,reimpresso em 2002, que acabou por se tornar uma referência de pesquisa. A publicação é um dos marcos inaugurais nessa aproximação, embora 14 anos antes a fotojornalista Jeanne Moutoussamy-Ashe (1951) tenha lançado Viewfinders: black women photographers (1986, Dodd Mead & Co). Contando com consultoria de Willis, Jeanne consegue articular um primeiro panorama relacionando duas grandes demandas históricas. A introdução da obra revela um espetacular esforço de pesquisa, apresentando uma diversidade de fontes, uma atenta interpretação de estatísticas e uma produção visual nascente que surpreendem qualquer leitor brasileiro, que enfrenta situação adversa nesse campo.

Em 1994, Deborah Willis adota uma estratégia simples para discutir temas conexos como identidade negra e fotografia, propondo a diversas personalidades da comunidade que comentem livremente imagens relevantes nas perspectivas mais diversas. Entre os convidados está a escritora bell hooks, por exemplo, mas vamos ficar aqui com a introdução de Willis. Ela comenta algumas fotografias e acontecimentos surpreendentes, que marcam sua formação como pesquisadora. A primeira, uma das mais contundentes, acontece em uma de suas visitas regulares à biblioteca pública na Filadélfia, sua cidade natal, ainda pré-adolescente, quando descobre a obra The sweet flypaper of life.

Com imagens de Roy DeCarava (1919-2009) e texto de Langston Hughes (1902-1967), a narrativa visual apresenta o cotidiano de uma família negra no Harlem nova-iorquino na década de 1950. Publicado pela Simon & Schuster em 1955, o ensaio fotográfico contou com apoio de uma bolsa Guggenheim. Existem pelo menos duas edições adicionais em 1967 e 1984, com variações do projeto gráfico.

Nas imagens de DeCarava, a Deborah Willis de 1994 comenta como aquela garotinha descobriu o primeiro livro que falava de uma experiência que ela conhecia, na qual podia se ver. A obra acabaria por marcar a produção do fotógrafo em sua trajetória profissional ao dar forma a registros do Harlem, da música negra etc. Autor de diversos livros, organizador de A Photographer’s Gallery, que funcionou entre 1955 e 1957 em seu apartamento, DeCarava é pouco conhecido no Brasil.

Vale a pena a leitura. Aqui vão os links para as edições de 1967 (em 2 endereços, pois a demanda de leitores é grande) e de 1984, de The sweet flypaper of life, como também de Picturing us.

https://archive.org/details/sweetflypaperofl00deca (1967)
https://archive.org/details/sweetflypaperofl00decarich (1967)
https://archive.org/details/sweetflypaperofl00deca_0 (1984)

https://archive.org/details/picturingusafric0000unse (1995, Picturing us)

Aproveite e explore o projeto Internet Archive, que reúne uma biblioteca virtual e a Wayback Machine, uma máquina do tempo, projeto pioneiro sobre memória da internet: archive.org 

(publicado originalmente no FotoPlus Boletim nº 44, dez.2019)

O lápis (da natureza) e outras construções simbólicas

Este é um texto em progresso. Uma homenagem tardia, pois já passaram 50 minutos deste ontem. 19 de agosto, dia da fotografia. A seu modo, é uma aproximação sem nenhuma ligação com a fotografia, mas vai se saber.

De inicio, Mr Talbot denominou suas experimentações como “desenhos fotogênicos” e, antes de tudo, tomando a referência adiante, organizou o livro The pencil of nature (1844). Era meu “primeiro livro” favorito até descobrir o álbum Photographs of British Algae: Cyanotype Impressions, organizado um ano antes por Anna Atkins.

Não, não, de volta ao tema: estamos aqui para falar de lápis (e um dia, talvez, sobre a decisão de Talbot ao fazer tal associação).

Como disse acima, é um texto em processo. A ideia é falar sobre lápis associados à fotografia. Adoro escrever a lápis, embora só consiga fazer garatujas, simples notas efêmeras rumo às bases de dados do projeto. Escrevo em computadores desde 1980, por volta disso. Notebooks, desde 1981, acreditem: sim, laptops, o prefixo em inglês não era nada erótico. Uso personal assistants desde 1996 com suas canetas (na verdade, meros pauzinhos). Smartphones, os mais precários, há uma década. Para que uso lápis? Garatujas, não falei?

Lápis, IMS, 2019.

A imagem acima é do lápis distribuído pelo Instituto Moreira Salles, no seminário Fotografia Moderna? …, agora em agosto. Grafite um pouco duro, mas acho que vou gostar. A madeira bruta é um maneirismo há décadas, que me agrada. A borrachinha preta na ponta até funciona, limpando sem deixar marcas. Acho que não está à venda na lojinha do Instituto, muito sofisticada para ficar atenta a banalidades.

Por muito tempo, meus lápis favoritos eram da Pinacoteca de São Paulo, mas quem usa lápis? Afora os desenhistas obcecados, pelos quais sou (reflexivamente) obcecado. Pausa mercadológica: acho que todo museu deve ter em suas lojas produtos baratos, a preço de bala, do tempo que estas eram baratas (e como sempre nada saudáveis). O Museu Paulista manteve por anos em sua lojinha singelos lápis e cadernos de notas (com retratos imperiais, ufa), que são sempre um agrado ao pequeno visitante, que, sim, eles usam lápis!

_________ (20.08.2019)