Estas reflexões são fruto de preocupações surgidas durante pesquisas e documentações
sobre o período e buscam, antes de um texto final de perfil acadêmico, rever abordagens sobre a produção
fotográfica paulistana nas primeiras quatro décadas deste século.
É notória a ausência da fotografia (enquanto meio expressivo) do movimento modernista
brasileiro. Centrado de início em manifestações de caráter literário e nas artes visuais, o modernismo
passou alheio ao mídia.
A idéia de ausência é par complementar das noções de presença e
alienação. Nem por isso, tem se argumentado sobre as razões desse afastamento de forma consistente.
Em nosso trabalho, publicado sob o título Fotografia em 1993, em co-autoria com Mônica Junqueira
Camargo, que apresenta uma história da fotografia em São Paulo centrada sobre o eixo da informação e difusão
da cultura fotográfica, a questão se impos. O distanciamento foi abordado de forma indireta, estudando entre outros a documentação
pessoal de literatos e escritores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Monteiro Lobato. Procurava-se através
de documentos diversos como cartas ou textos para palestras compreender a visão sobre a fotografia.
O resultado desse levantamento, que aguarda uma tratamento mais sistemático, pode ser visto no capítulo
Arte e fotografia - o estatuto da técnica, no livro citado. Mais adiante retomaremos algumas conclusões.
O que nos interessa aqui é refletir sobre o panorama fotográfico paulistano, sua configuração
no período entre 1900 e 1940 e eventuais motivos do distanciamento do campo artístico e seus movimentos de renovação.
No polo oposto dessas preocupações, complementando-as temos a questão do moderno de modo amplo, que será
abordada em paralelo.
O livro de Renato Rodrigues e Helouise Costa A fotografia moderna no Brasil, publicado em 1996
(Funarte/UFRJ) a partir de texto realizado em 1987, estabelece como um marco da experiência moderna brasileira em fotografia
a Escola Paulista, denominação que agrupa participantes que freqüentaram por breve período nos
anos 50 o conjunto de atividades ao redor do Foto Cine Clube Bandeirante (1939).
Os autores apontam essa produção como primeira experiência de busca de uma expressão
moderna de fotografia brasileira de forma contínua, aglutinada ao redor de um grupo de produtores. No entanto, algumas questões
poderiam ser levantadas.
Esse momento de produção ocorreu deslocado de um contexto? Em caso positivo, o que permitiu
seu surgimento? Não existiriam outras manifestações anteriores de menor escala, ao menos no cenário paulistano,
que pudessem ser incorporadas ao movimento de renovação?
Para responder esse conjunto de questões, é necessário um pequeno retrospecto. Atendo-nos
ao cenário paulistano na virada para o século XX, podemos dizer com segurança que ao final da primeira década
todos os diversos gêneros de produção em fotografia estavam implementados ou em vias de. Estúdios de retratos,
fotos técnicas, documentação de obras e paisagem urbana, nenhum campo fugia ao desenvolvimento progressivo de uma
demanda a ser atendida.
Aqui pode ser definido um primeiro ponto. Até a virada do século, poucas manifestações
tiveram lugar que se propusessem a "ver" a fotografia como meio expressivo, salvo às exceções
mencionadas a seguir. Artefato conhecido e aceito por todos, a fotografia não parece ter sido objeto no contexto local
de nenhuma evidente restrição a uma tentativa de apresentar-se como manifestação artística
à altura da pintura, por exemplo.
Sob este ângulo, poderíamos argumentar que a presença dos fotoclubes, que centraram
sua produção seguindo o modelo tradicional de fotoclubismo com forte informação francesa, representaram um
momento chave, uma guinada, ao proporem a fotografia como arte.
O quadro de informações sobre os anos entre 1910 e 1930 deverá mudar de forma mais
substancial quando for possível analisar as coleções de periódicos especializados, publicados em São
Paulo. As coleções disponíveis são praticamente únicas, estando ainda na esfera privada, como
a do fotógrafo Eduardo Salvatore, um dos fundadores do FCCB. Entre os títulos dessa coleção, presenteada
pela família de Valêncio de Barros, um dos elos entre a primeira geração de fotoclubismo (anos 20) e o
FCCB, temos a Revista Brasileira de Photographia. À guisa de exemplo, durante o ano de 1926, a revista publica alguns
textos estrangeiros, entre ele um creditado a Jacques Beryl, apresentado como colaborador da revista francesa Photo Revue.
Temos assim uma primeira proposição: o fotoclubismo instaura uma preocupação artística.
Independente de um juízo de valor, considerando o quadro internacional, essa produção segue os parâmetros
da fotopintura, empregando um conjunto amplo de técnicas artesanais.
Numa perspectiva local, essa atitude representa um avanço. Define-se uma nova atitude perante
a obra, uma nova função. Numa perspectiva global, de industrialização crescente, de explosão
de novas tecnologias associadas à vida urbana, essa fotografia representaria, com certeza, a olhos de outra realidade uma aberração
subtropical.
Num contexto tímido para as artes plásticas em São Paulo, considerando a primeira
década deste século como um período que não dispunha de um universo amplo de informação e ensino,
de locais para exibição e mercantilização para as artes visuais, as colocações relativas ao
panorama fotográfico não devem ser vistas de modo depreciativo para a fotografia paulistana.
O caminho adotado pelos adeptos da fotopintura, que no contexto europeu e americano pode ser associado a uma reação
ao caráter mecanicista da fotografia, uma busca de restauração da figura do autor, adotando procedimentos artesanais que no extremo
anulam as características do suporte fotográfico, mereceria ser visto sob outro ângulo em sua manifestação
paulistana.
A fotopintura, como o texto de Deiró exemplifica, combate a subordinação da fotografia
a uma visão homológica da realidade, enquanto visão direta. Combate a 'falha' do processo técnico
apresentada pelo registro uniforme de detalhes. Adota assim a intervenção para adequação à
representação ideada pelo fotógrafo, reforçando paralelamente a noção de autor, questão esta
cujo debate não se apresenta no panorama local de forma clara.
Um exemplo desse posicionamento pode se encontrado no número 4, de 1926, da Revista Brasileira
de Photographia, que publica um artigo de A. Jonon: Façamos photographia pictórica. A introdução
do artigo, redigida pela equipe da revista, é explícita: "Falta aos amadores daqui a 'coragem de intervir' na finalisação
de suas provas, a fim de imprimir-lhes um caráter artístico, uma interpretação pessoal, que obrigue o expectador
a 'vêr', a 'sentir' o effeito e a emoção que experimentou o amador no momento em que se dispôz a reproduzir
pela photographia a paizagem ou a scena anecdotica que se lhe offerecia." (p.4). O artigo de Jonon é claro ao propor
"uma dominação do autor sobre a materialidade do assumpto". Propõe a intervenção como
forma de "regular a distribuição de nitidez", bem como prevendo um intervenção pragmática
visando eliminação de objetos em função da composição.
Caberia avaliar em relação a essa produção local as razões que restringiram
seu desenvolvimento e até mesmo identificar os limites dessa intervenção em relação ao referente.
Falta à nossa proposição um levantamento detalhado de textos isolados e artigos publicados
na imprensa, com destaque para as revistas especializadas. De produção e alcance limitado, essas fontes representam
porém os únicos registros escritos sobre a produção fotoclubista do período. Certamente, a noção
de construção era única, restrita a obra. Não pensava-se intervenção a outros níveis
como a captação ou montagem e difusão da obra, que persistia na sua integridade.
As questões de intervenção nasceram mortas, aqui. Eram uma ideário de recente introdução,
para uma prática de novatos, distanciados de um circuito de arte estabelecido, de um mercado. Restritas a um tratamento
de superfície parecem ter sofrido as conseqüências de uma circuito de produção informe, cujo desenvolvimento
pouco consistente foi atropelado por alterações externas de linguagem e técnica, que aportaram no país
ao final dos anos 30.
2.Fotografia e o novo cenário da cidade
Simultaneidade, ícones urbanos, velocidade. Como se insere a fotografia em meio ao conjunto de
valores que a produção modernista valoriza em seu primeiro momento? Artigos da revista Klaxon ou ainda o Manifesto
do Pau Brasil de Oswald de Andrade enumeram vários itens como o cinema ou outdoor. Sensíveis a uma
mudança no cotidiano urbano, ainda que numa versão tímida, precária e restrita, mas uma mudança,
os modernistas não reservaram espaço para a fotografia.
Os primeiros sinais de uma indústria de comunicação de massa se apresentam: cinema, imprensa
e rádio. Os jornais tradicionais não tardarão a sentir a concorrência das revistas. Basta ver o surgimento
de Suplementos em rotogravura como o editado pelo jornal O Estado de São Paulo, a partir de 1930.
O surgimento do Suplemento em Rotogravura antecede o aparecimento em 1936 da publicação periódica
S.Paulo. Editada, também em rotogravura, sob coordenação de grupo de jornalistas e intelectuais próximo ao governador
Armando de Salles Oliveira, a revista visava divulgar as realizações do governo estadual.
O que a experiência da revista S.Paulo introduz de relevante para uma análise de
um modernismo fotográfico na cidade de São Paulo vai além de um projeto gráfico radical ou a transposição
gráfica de uma sensibilidade a um cenário urbano em transformação. As imagens perdem sua autonomia
individual, surge a página-cartaz. Uma narrativa visual, explorada timidamente pelas experiências de fotomontagem,
ganha estatuto. A repercussão da revista e sua vendagem parece demonstrar a aceitação do projeto, embora
o projeto radical não tenha sido adotado no período que se sucede. Apenas nos anos 50 a produção publicitária,
em pleno auge do uso da ilustração, apresentaria experiências com algumas similaridades.
Se a revista S.Paulo exaltava a cidade, seu crescimento acelerado, esse fenômeno não
era único nos quarenta anos compreendido por esta análise. Seria interessante lembrar que entre as várias produções
fotográficas sobre a cidade de São Paulo, em especial durante os anos 20, que coincidem com as comemorações
do primeiro centenário da Independência, destaca-se a série de panoramas da cidade realizados por Valério
Vieira entre 1905 e 1921.
O que há relevante nessas grandes telas? A grande dimensão. Vieira introduz na fotografia
local as primeiras manifestações que poderiam rivalizar com o cinema ou os imensos cartazes de rua.
Não era uma novidade na produção visual brasileira. Victor Meirelles expunha em 1891, na capital
federal, o Panorama do Rio de Janeiro(15). Mas seu suporte era a pintura. Valério ao adotar a fotografia para registrar
a paisagem paulistana conquistava um lugar para a técnica. A recepção a suas obras ocorreu, porém, dentro
do universo das comemorações oficiais. Todos os diversos eventos que contaram com grandes panoramas estão
registrados na imprensa com destaque para a afluência de espectadores. No entanto, essas obras - que adotam procedimentos
da fotopintura em especial na última versão em 1921, exposta em 1922, e trazem o registro da paisagem para a grande
escala - não causaram impacto sobre o restante da produção fotográfica local.
Sobre a percepção do meio por membros do quadro cultural paulistanos no período em
questão, o capítulo do livro Fotografia, já mencionado, aborda de forma sumária a questão.
A visão instrumental da fotografia pelos modernistas é apenas reflexo da ausência de
uma produção "artística" visível e continuada. O isolamentos dos grupos produtores, no caso o fotoclubismo,
e a orientação dada a essa produção apenas mantiveram este segmento da produção fotográfica
num nicho restrito. Ausência de uma crítica especializada sobre imagem e o 'não entendimento' sobre a extensão
das aplicações da imagem de base fotográfica em setores como a imprensa sedimentaram a alienação
das preocupações modernistas.
A intenção deste ensaio não é 'criar' uma obra modernista em fotografia,
uma produção. Mas definir traços antecipatórios, traços de uma interpretação da modernidade,
da sensibilidade ao moderno.
Fica a pergunta sobre os pontos destacados: essas manifestações não mereceriam ser incorporadas
a um conjunto de eventos de caráter pré-moderno?
Façamos, antes, um balanço dos pontos que poderiam justificar a ausência da fotografia
no campo das manifestações do modernismo no contexto paulistano entre 1900 e 1940:
a fotografia como meio técnico plenamente estabelecido e presente no cotidiano;
ausência de uma produção com estatuto artístico de repercussão no campo cultural,
mantendo-se as atividades restritas ao circuito do fotoclubismo.;
inexistência de uma crítica especializada, de mecanismos de difusão de informação
internacional regular e de um mercado de arte para essa produção artística.
Os anos 40 marcam uma passagem muita definida no panorama fotográfico paulistano. Num primeiro
momento, a renovação ainda conta a presença de alguns fotógrafos ligados à produção
fotoclubística da primeira geração paulistana. É fato registrado pela ata de fundação do
então Foto Clube Bandeirante em 1939, que reúne ainda participantes de iniciativas similares do momento anterior,
uma geração envelhecida que daria espaço aos novos fotógrafos 'formados' nos ares advindos no segundo
pós-guerra.