A viagem do Capitão Lucas e do daguerreótipo a Sidney
por Rupert Derek Wood


Publicado originalmente no NZ Journal of Photography, (16); 3-7, agosto 1994; republicado no Journal de la Societé des Océanistes (Paris), (102): 113-118, 1996 e, com breve revisão em The Daguerreian Annual 1995 (p.51-57).



Todas os textos sobre história da fotografia na Austrália concordam que um episódio, em 1841, representa o primeiro uso no país de uma câmera fotográfica. Assim começa um recente ensaio:

Mas quem era o Capitão Lucas; de onde ele veio e o que era a “Expedição da Escola Naval” ?   Tais perguntas permaneceram completamente sem respostas. Um verbete publicado recentemente no Dictionary of Australian Artists sobre o 'Capitão Lucas, fotógrafo amador (?), comerciante de câmeras fotográficas e capitão da marinha' tentou reunir um pouco das identificações possíveis, mas foi confundido pelo fato que dois ou até mesmo três capitães com o mesmo nome parecem ter estado em Sidney em 1841: era ele francês ou inglês? 

Este ensaio oferece uma nova abordagem destes problemas. Embora Lucas continue a apresentar uma existência um pouco dividida, é evidente que o primeiro uso do daguerreótipo em Sidney pode ser considerado como a difusão mais longínqua desta invenção francesa, comparável aos estágios iniciais e mais próximos de difusão em Londres e Nova York(2).

Ao contrário destas duas cidades, é necessário fazer a jornada da Europa à Austrália com pelo menos uma escala: nosso primeiro foco de atenção vai então para um navio, L'Oriental, num ponto a meio do caminho.
 

O L'Oriental rumo à América do Sul

Um francês, Louis Comte, realizou as primeiras demonstrações do daguerreótipo ao sul do Equador. Elas aconteceram no hotel Pharoux no Rio de Janeiro em 17 de janeiro de 1840
(3) e 29 de fevereiro no palácio uruguaio do Cabildo em Montevidéu (4). Comte tinha viajado até a América do Sul numa pretensa expedição ao redor do mundo em uma fragata francesa – L'Oriental – que havia deixado a França no final de setembro de 1839 (5).

Descrito na França como uma “escola flutuante”, e em outros países como “Colégio hidrográfico” e “Expedição da Escola Naval”, a viagem do L'Oriental tinha uma duração esperada de dois a dois anos e meio. Ela tinha sido organizada ao longo da primeira metade de 1839 pelo Capitão Augustin Lucas (1804–1854?).

Não está completamente claro se o seu nome era Augustin ou Auguste; ambas as formas aparecem em fontes primárias. Ele nasceu em 1804 na cidade de Bangor, situada em Belle–Ile, uma ilha junto à costa ocidental francesa da Bretanha, a meio caminho entre Lorient e St Nazaire. Em 1832 ele casou com Elizabeth Bellais que, com as duas crianças do casal, o acompanharia na expedição.

Em meados da década de 1830 Lucas era o capitão do Jeune Lise, de Bordeaux, mas algumas semanas depois de voltar para a França, em 04 de junho de 1838, vindo de Guadalupe (6), Lucas permaneceria em Paris perseguindo a idéia de liderar esta viagem educacional ao redor do mundo. Durante o ano seguinte, publica um folheto de 31 páginas sobre a organização do comércio marítimo(7). Lucas procurou vários órgãos oficiais e muito cedo pode anunciar que seu projeto estava sob os “auspícios do Governo”, embora isto provavelmente estivesse limitado a cartas de apoio escritas pelos Ministros de Marinha e de Instrução Pública, entre outros.

Várias organizações, como a Academia de Ciências de Paris e a Sociedade de Geografia (8) na França, e na Bélgica, foram também procuradas em busca de apoio e conselho. Mais significativa foi a aproximação realizada pelo Capitão Augustin Lucas, já em março de 1839, junto a uma influente organização parisiense relacionada à indústria e ao comércio, a Societé d'Encouragement pour l'Industrie Nationale (Sociedade para estímulo à indústria nacional). Seus membros consideraram que a expedição era de interesse da Sociedade, embora a natureza do apoio que lhe deram, em 31 de julho, não tenha sido especificada(9). Quando Lucas chega a Montevidéu em fevereiro de 1840, envia àquela Sociedade, para publicação no seu boletim mensal, um relatório sobre as relações comerciais entre França e Brasil(10).

Sem nenhuma dúvida, o equipamento para daguerreotipia teria sido levado de qualquer modo na viagem - sua importância para os viajantes era muito enfatizada na França nas primeiras discussões sobre fotografia -, pois a invenção de Daguerre estava causando grande excitação na França, especialmente durante os dois meses anteriores à partida do L'Oriental. Na verdade, Jean Jobard, editor de um jornal de Bruxelas Le Courrier Belge, visitou “a oficina de Daguerre” no verão de 1839, “ao mesmo tempo em que o Capitão Lucas que há pouco havia se candidatado a levar um destes instrumentos em sua viagem ao redor do mundo”(11).

Além disso, a ligação de Lucas com a Societé pour l'Industrie Nationale teria fornecido uma estímulo especial a uma valorização comercial da daguerreotipia. É bem conhecido que o segredo de Daguerre não foi divulgado até François Arago apresentar uma conferência, com suporte de Daguerre, na Academia de Ciências em 19 de agosto de 1839 e de Daguerre ter realizado a primeira de três demonstrações públicas no Palais d'Orsay, na margem esquerda do Sena em 07 de setembro. Ao término daquela primeira semana de setembro de 1839 tanto o aparelho como o manual de Daguerre sobre a técnica estavam disponíveis finalmente ao público em Paris.  Menos conhecido é o fato que Daguerre realizou uma palestra sobre a técnica na Societé d'Encouragement pour l'Industrie Nationale, na rue de Bac, em Paris, na quarta-feira, 04 de setembro de 1839. É assim concebível que Lucas ou Comte pudessem ter estado na reunião da Sociedade para ouvir Daguerre falar. Sua discussão com os membros da Sociedade foi divulgada com detalhes em dois jornais parisienses(12). Mais significativamente, ela resultou em uma descrição da técnica de Daguerre, com desenhos detalhados da câmera fotográfica e do equipamento de processamento, sendo publicada na edição de setembro de 1839 do boletim da Sociedade(13), um exemplar que muito bem poderia ter sido levado na viagem com Augustin Lucas.


Um prospecto sobre a expedição foi editado(14).  Um total de setenta e duas pessoas, quarenta e duas das quais estudantes franceses, e doze vindas da Bélgica, seguiram viagem. A maioria dos professores era da Bélgica onde Lucas obteve efetivo suporte através do professor L.A. Vendel–Heyl.

A educação deveria incluir estudos gerais e idiomas; o treinamento estava orientado especificamente para carreiras de comércio e da marinha, com aulas sobre navegação por Lucas e conferências do professor Moreau, da Escola de Comércio, de Bruxelas. O custo para cada jovem estudante era de 5.000 francos (US$300). 

Lucas tinha esperado inicialmente que o Ministério de Marinha lhe permitisse usar um navio da Marinha - L'Hydrographe, e seus planos poderiam ter desmoronado quando este apoio não se concretizou. Afortunadamente a expedição ainda pôde ter continuidade quando ele obteve permissão para uso do L'Oriental(15), ao custo de 82.000 francos destinados a seus proprietários - Despacher e Bonnefin, de Nantes.

A partida do L'Oriental teve lugar em 01 ou 02 de outubro, permanecendo em Lisboa de 07 a 15 de outubro, e na ilha da Madeira de 23 a 25 de outubro. Navegando então via Teneriffe e Gorée [Dakar], a expedição alcança a Bahia em 07 de dezembro de 1839, depois de visitar Recife (“Fernambouc”), o ponto mais ao norte da costa brasileira (sic). A participação exata do abade Louis Comte na viagem é obscura, tendo sido relacionado como um dos três passageiros franceses. Ele também esta registrado como capelão e professor de música. Na América do Sul os relatos sobre seus primeiros daguerreótipos o chamam de “Compte” em lugar de Comte, mas é provável que esta última seja a forma correta. Naquele período, ele estava com 39 anos aparentemente, tendo nascido em Nantes, mas vivido por muitos anos no outro lado da França, em Grande–Verrière, uma pequena aldeia próxima a Autun(16).

Comte ficaria, junto com seu equipamento de daguerreotipia, no Uruguai, onde manteve um estúdio por muitos anos, mas L'Oriental continuou a viagem sob comando do Capitão Lucas. A intenção era subir a costa ocidental de América do Sul em direção à Califórnia e atravessar o Pacífico rumo a “La Nouvelle–Hollande” (a Nova Holanda) – isto é, a Austrália. Os pais dos alunos tinham sido aconselhados a enviar correspondência para Sidney, via Inglaterra.   A intenção era visitar as Filipinas, descer até a Índia, como aparecia em grande parte dos planos para os estudantes. A última parte da expedição era avançar além do mar Vermelho, rumo ao sul até Bourbon e Madagascar, retornando à América do Sul, navegando então para norte até Boston e atravessando o Atlântico de volta à França. Mas, depois de ficar alguns dias em Valparaíso, L'Oriental naufragou na costa do Chile logo após partir daquele porto em 23 de junho de 1840 (17).  Tudo no navio foi recuperado e os estudantes retornaram para a França e a Bélgica em navios regulares.


O Justine e a Austrália

L'Oriental deve ter deixado a França com mais de um equipamento para daguerreotipia. Assim, não pode ser apenas uma coincidência, que outro navio francês, Justine, tenha chegado a Sidney, vindo de Valparaíso, em 29 de março de 1841, sob comando do Capitão Lucas, descrito no Australian Chronicle, de 13 de abril de 1841, como “ex-chefe da Expedição Escolar Naval”, oferecendo aparelhos de daguerreotipia para venda no mesmo período. O ponto de venda localizava-se em Macquarie Place nos escritórios de Joubert e Murphy
(18), comerciantes de vinho e alimentos, que eram os agentes gerais para os navios franceses. O comprador seria “completamente instruido sobre o método para tirar vistas”. Um daguerreótipo mostrando Bridge Street a partir de Macquarie Place (a primeira imagem fotográfica realizada na Austrália, que parece não ter sobrevivido) foi levado certamente por alguns “cavalheiros” em 13 de maio. Presumivelmente Lucas estava envolvido nesta demonstração e não apenas Joubert e Murphy. Outras sessões foram realizadas posteriormente em seus escritórios. Não parece provável que a câmera tenha sido vendida então, mas permanecido nas mãos de Joubert. Quando este decidiu retornar à Europa quase dois anos mais tarde, “uma (câmera para) daguerreotipia muito superior, completa, com todo o aparato e grande número de placas, estava em meio aos móveis e livros colocados em leilão em sua residência em Macquarie Place(19).


O Justine havia partido rumo a Nova Zelândia e Austrália, partindo de Valparaíso, em 06 de novembro de 1840 (20), de forma que a oportunidade para transportar a carga do L'Oriental é evidente. Pareceria quase certo que o Capitão Lucas, que trouxe o daguerreótipo para a Austrália, era o líder da expedição escolar naval do L'Oriental que deixou a França no começo de outubro de 1839. Assim a realização da primeira imagem fotográfica na Austrália está ligada em linha direta com o primeiro daguerreótipo realizado na América do Sul. Este artigo não pode parar aqui simplesmente, porque não é completamente inquestionável que o homem em Sidney era exatamente o mesmo Capitão Lucas que tinha partido da França!


Quando Augustin Lucas deixa os portos da Bretanha francesa no L'Oriental ao final de setembro de 1839, ele estava acompanhado pela esposa e duas jovens crianças. Em Belle–Ile, em janeiro de 1839, sua irmã Louise–Augustine tinha casado com J. F. Briel, descrito como simples pescador e marinheiro com experiência regional. Ele serviu, sob comando de Lucas, como terceiro tenente no L'Oriental, acompanhado de sua esposa. Era assim uma verdadeira viagem familiar, completada pelo mais jovem membro da tripulação: o irmão da esposa de Lucas, com 16 anos. Na verdade, a relação familiar é o elo com a chegada do Justine a Sidney. Porque Augustin Lucas não tinha apenas uma irmã, mas um irmão mais jovem. Nascido em 11 de fevereiro de 1808, em Belle–Ile, François–Marie Lucas tornou-se também capitão, quase na mesma época que o irmão. Na verdade, era ele era o capitão do Justine!


Em 1837, o Justine partiu de Le Havre, capitaneado por François Lucas seguindo um plano de levar 240 emigrantes até Sidney (21). Seguia também nesta viagem J. Bernard, dono do Justine e organizador do empreendimento. Depois de chegar ao Rio Janeiro em novembro, os emigrantes foram persuadidos por agentes governamentais que o Brasil poderia ser um substituto para a Austrália. Levando de início uma carga de açúcar, o Justine, após ter sofrido alguns danos em Montevidéu em janeiro de 1838 (22), continuou viagem rumo à costa do Pacífico. Daqui por diante, em 1838 e 1839, notícias sobre navegação informam sobre o percurso do navio ora capitaneado por Lucas, ora por Bernard. O Justine deixou Valparaíso, levando cavalos, em 01 de novembro de 1838, atingindo o Taiti e a Nova Zelândia antes de chegar a Sidney em 25 de abril de 1839(23). Três meses depois, o Justine partiu de Sidney, não para cruzar novamente o Pacífico, mas indo para oeste, sem carga, até Mauritius e Bourbon (isto é, Réunion). De volta, com uma carga de açúcar, eles retornam a Sidney em fevereiro de 1840(24). Após poucas semanas, em 07 de abril, o barco deixa Sidney, navegando via Nova Zelândia rumo ao Chile: o capitão foi registrando como sendo Lucas tanto em Sidney como na chegada a Valparaíso(25). Assim, em abril de 1840, ambos os navios - L'Oriental e Justine rumavam para Valparaíso vindo de direções opostas: ambos os navios sob o comando do “Capitão Lucas.” Em nenhum momento, nas notícias sobre navegação, os prenomes eram mencionados, mas é um fato estabelecido que Augustin estava no primeiro e o jovem François, no segundo navio. Assim não há dúvida que não muito depois do L'Oriental ter naufragado na costa da América do Sul, em Valparaíso, o Justine chegou ao local em 23 de setembro de 1840. Quando posteriormente o capitão do Justine escreve um relato sobre a viagem, ele apenas comenta: “retornei a Valparaíso para carregar uma carga similar a anterior (isto é, cavalos), acrescida de outros artigos”(26).  Não havia nenhuma exigência oficial que o obrigasse a escrever um relatório, mas ele desejava apresentar suas idéias às autoridades francesas sobre potencial para a colonização francesa no Pacífico. Então não é nenhuma surpresa que ele não faça nenhuma menção ao encontro com seu irmão mais velho. O Justine partiu novamente em 06 de novembro, deixando Valparaíso, atingindo o Taiti e a Nova Zelândia para retornar a Sidney em 29 de março de 1841 (27).
    Sydney Gazette, 30 de março de 1841:
    Informes sobre navegação. Chegadas. De Valparaíso, via Bay of Islands (Nova Zelândia) ontem [29 de março de 1841], tendo deixado o porto anterior em 06 de novembro, e este último em 17 de novembro, o navio Justine, Capitão Lucas, com farinha, vinhos, etc. Passageiros Capitão Bernard, Capitão Elliot, William Eastcott, exmos srs. Dessuth e Guion, senhorita Lucus [sic], e três (passageiros) na segunda classe.

    Sydney Herald, 06 de abril de 1841:
    Relação geral de comércio de Sidney, fornecida pela Alfândega. Importações. Relatórios, 02 de abril [de 1841] – Justine, barco de 265 toneladas, Lucas, mestre, vindo de Bay of Islands [NZ]; 85 barris de farinha, 80 barris de carne de boi, 2 [caixas para jardim], 50 caixas de pepinos em conserva, 1 caixa de passas, 3 caixas de amêndoas, 2 caixas de tinta, 10 barris de munição, 50 caixas de nozes, 20 sacas de feijões, 150 caixas de sabão, 4 caixas de velas, 75 sacos de trigo, 12 sacos de semente de alfafa, 20 sacos de cevada, 15 toneladas de concha, 1000 cocos, 1 barril de suco de lima. Capitão Bernard.
Obviamente o proprietário Capitão Bernard, e não um dos Lucas, registrou a carga na Alfândega e era o agente para as mercadorias em Sidney. É evidente que nenhum equipamento para daguerreotipia foi listado entre os bens importados. Alem disso, não está indicado, mas temos a presença de “Mademoselle Lucus” .  Um escritor francês que anteriormente estudou com atenção a história da expedição de Augustin Lucas no L'Oriental comenta que “depois do naufrágio, Lucas desapareceu durante algum tempo no ano de 1841 e reaparece no Taiti”(28). A duração deste “desaparecimento” corresponde exatamente ao intervalo para chegada da câmera fotográfica à Austrália. A descrição do jornal australiano em abril de 1841 do homem que trouxera o daguerreótipo - “Capitão Lucas, ex-capitão da Expedição Escolar Naval” – ajusta-se exatamente a Augustin, capitão do acidentado L'Oriental, ao invés de seu irmão mais jovem – François. Há poucas dúvidas de que o equipamento para daguerreotipia estivesse presente na viagem de L'Oriental, mas é também muito provável que ambos os irmãos chegaram no Justine.  Obviamente o capitão do Justine já teria sido apresentado a Joubert em Sidney, mas o fato que alguns meses mais tarde Augustin estava escrevendo a Joubert, em 15 de setembro, do Taiti(29), indica que ele também era seu conhecido.

Quando François Lucas partiu da França o mundo inteiro ainda desconhecia a fotografia e o daguerreótipo. Mas 1839 trouxe uma mudança profunda. Assim quando Augustin Lucas chegou à extremidade oriental do Pacífico em 1840 ele tinha visto como um mundo poderia ser preservado e refletido nos “Espelhos Mágicos” de Daguerre.  François introduziu o equipamento no Pacífico. Mas os primeiros dois ou três anos da daguerreotipia de 1839 a 1841 também cobrem um momento crítico para os assuntos políticos no Pacífico. François chegou a Nova Zelândia no Justine em fevereiro de 1839: “a posição geográfica desta bonita terra, os excelentes portos, o clima aprazível, imensas florestas,... sua proximidade à nova colônia de Nouvelle–Hollande [Austrália], eu acredtio que estas ilhas terão um papel importante no futuro do Pacífico” (30). Em dezembro de 1839, chegavam notícias a sua velha casa em Belle–Ile de que ele comprara sete milhas quadradas de terra na Nova Zelândia(31). Porém seu entusiasmo desapareceu ao “não prever que em menos de um ano a [Inglaterra] iria ameaçar minha propriedade, o que aconteceu após a chegada do Capitão Hobson, governador designado para a Nova Zelândia”. Assim a Proclamação de Hobson em 30 de janeiro de 1840 (“não julga conveniente reconhecer como válido qualquer título de propriedade na Nova Zelândia que não seja emitido ou confirmado por Sua Majestade”(32) e o Tratado de Waitangi, concluído na semana seguinte entre os britânicos e os chefes Maori, influenciaram indubitavelmente não só o fracasso do estabelecimento dos franceses na Nova Zelândia(33)), como também o local de chegada da fotografia no Pacífico.
 

Restou apenas um breve relato de François sobre sua viagem a partir de Valparaíso, na qual o equipamento de daguerreotipia foi transportado:  “chegamos novamente ao Taiti, e quando eu tinha vendido tudo na Baía de Ilhas [NZ] e finalizado a operação, parti rumo a Sidney para recarregar e realizar alguns reparos antes de retornar ao Chile e a subseqüente volta à Bordeaux”. Assim, após ter colocado à venda o equipamento para daguerreotipia em Sidney, o Justine parte em 04 de junho, cruzando novamente o Pacífico, até Valparaíso(34).  O Justine deixa este porto em 28 de outubro de 1841 em direção a Bordeaux, chegando a França no final de fevereiro de 1842(35). François Lucas abandonou na Nova Zelândia tanto suas esperanças como também a “vida de marinheiro”. Monta uma fábrica para processamento de sardinha em Belle–Ile, mas não apenas o empreendimento fracassaria em breve, como também ele morreria logo em seguida(36).

As personagens entremeadas dos dois irmãos Lucas estão ainda mais uma vez representada no fato que seria Augustin que permaneceria no Pacífico, ao invés de François. Augustin Lucas morou no Taiti entre setembro de 1841 e 1848, quando retorna à França. De acordo com o livro de Le Gallen – Histoire de Belle-lle, ele logo seguiria para os EUA, onde acreditasse que tenha morrido por volta de 1854. Um ano após sua ida para o Taiti, uma expedição francesa oficial do (navio) Reine Blanche, sob comando do Almirante Dupetit–Thouars chega, em agosto de 1842, visando o controle francês do Taiti, bem como trazendo uma câmera para daguerreotipia adquirida oficialmente em Paris(37). Há vagas notícias sobre Lucas envolvido em disputas com missionários, como instigador de intrigas contra o Cônsul francês e como negociante de álcool, fatos que refletem a situação conturbada no Taiti naquele momento (38).   O mesmo vale para Elisabeth Lucas. Uma descrição dela apenas como esposa é certamente muito inadequada. Quando ela, com as duas crianças e outro capitão, não Augustin, visitou as Ilhas Gambier em 1843, ela era ostensivamente um anjo dedicado aos missionários. Ainda assim esses missionários católicos franceses logo a caracterizariam como uma livre-pensadora realizando negócios em Mother-of-Pearl (Taiti) associada com elementos de má reputação (39). As imagens vagas desses aventureiros comerciantes atuantes no Pacífico na década de 1840 superam os enredos de muitos romances – dos quais Herman Melville, que estava no Taiti na mesma época que Augustin Lucas, tinha conhecimento. A chegada do daguerreótipo é parte desta extraordinária história real.
 

Conclusão

A mais recente opinião entre historiadores da fotografia na Austrália é que o Capitão Lucas, que trouxe a daguerreotipia para o continente, era inglês. Mas é possível agora ter um quadro diferente e mais completo do evento. Foi necessário apresentar evidências detalhadas sobre a relação entre dois navios franceses, que permitem oferecer um breve sumário dos eventos:
 
O navio L'Oriental deixou a França em fins de setembro de 1839. Organizada pelo Capitão Augustin Lucas (1804–1854?), a expedição destinava-se a uma viagem ao redor do mundo com duração aproximada de dois anos, num projeto educativo em comércio marítimo. Imagens em daguerreotipia foram produzidas por Louis Comte no Rio de Janeiro em 17 de janeiro e em Montevidéu em 29 de fevereiro de 1840. O navio naufragaria em 23 de junho de 1840 em Valparaíso. O Justine, sob comando durante alguns períodos de François Lucas, irmão mais jovem de Augustin, chegaria em Valparaíso, em 23 de setembro, após uma travessia do Pacífico. Este navio parte em novembro de 1840, chegando em Sidney em 29 de março de 1841. Em 13 de abril, o Australasian Chronicle anunciaria que “os habitantes de Sidney terão agora a oportunidade de testemunhar os efeitos desta invenção muito singular [o daguerreótipo], um dos instrumentos trazidos à colônia pelo Capitão Lucas, ex-chefe da Expedição Escolar Naval... Capitão Lucas pretende dispor do instrumento a custo muito baixo...” .  A descrição do capitão combina exatamente com a de Augustin Lucas, do L'Oriental, mais do que a de seu irmão mais jovem, François. Deste modo as primeiras imagens fotográficas foram realizadas na Austrália, sendo a primeira daguerreotipia conhecida a produzida em conjunto com a firma francesa Joubert e Murphy, em Macquarie Place, Sidney, no dia 13 de maio de 1841.
 





Notas:

  1. Gael Newton. Shades of Light: Photography and Australia 1839-1988, (Canberra: Australian National Gallery, 1988) , 5, 173n.
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  2. R. D. Wood, “Ste Croix in London”, History of Photography, 17 (Spring 1993), 101–7; R. D. Wood, The Arrival of Daguerreotype in New York (New York: American Photographic Historical Society, 1994), 20pp.
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  3. Augusto da Silva Carvalho, “Subsídios para a história da introdução da fotografia em Portugal”, Memórias da Academia de Lisboa, classe de Ciências, tomo III (1941), 21–44, traz um parágrafo à página 24 sobre o Capitão Lucas e Comte no Rio Janeiro.  A fonte utilizada por Carvalho foi o Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) , 20 de janeiro de 1840 [um jornal ao qual o este autor não teve acesso]: “convidou o imperador do Brasil e a sua familia a assistirem à exhibiçâo do apparelho de Daguerre para tirar vistas, convite que foi aceite e ao paço da Boavista foi o capitâo acompanhado pelo abade Comte, que era o técnico e duma janela do torreâo com uma exposição de nove minutos... ”  Este relatório de época sobre a realização de um daguerreótipo no Rio de Janeiro com uma exposição de nove minutos é interessante.  É uma confirmação do tempo de exposição esperado com a técnica básica de Daguerre que não teria conseguido registrar os soldados e cavalos como escreve Gilberto Ferrez no primeiro capítulo de seu texto Photography in Brasil 1840–1900, traduzido do original em português por Stella de Sá Ergo (Albuquerque: University of New Mexico Press, 1990), 1.  Ferrez alega imprudentemente que três daguerreótipos reproduzidos nas ilustrações 2–4 foram realizados por Comte (Ferrez, 6, 8, nota de rodapé N.6 nas páginas 223–4). Não só estes três daguerreótipos são muito sofisticados (isto é, chapas para instantâneos de alta velocidade com imagens ovais em refinados estojos de couro) para serem datados de 1839, mas de fato Ferrez admite na nota de rodapé n.6 à página 223 de edição em inglês de 1990 que um dos daguerreótipos não poderia ser anterior a 1841 porque “a platibanda neoclássica do Paço” que aparece na imagem não foi construída até aquele ano!  A opinião de Weston Naef, mencionada por Ferrez na nota de rodapé dele n.6, de que estes daguerreótipos seriam provavelmente uma obra de Augustus Morand, oriundo de Nova York, que estava no Hotel Pharoux no Rio de Janeiro em dezembro de 1842 (Ferrez, 6, 8) faz mais sentido. É uma pena que Gilberto Ferrez não tenha utilizado o raciocínio da nota de rodapé n.6 na atribuição deste daguerreótipo do Paço da Cidade (nota do tradutor: sic) que ele faz com destaque, mas sem cautela, no início do primeiro capítulo.
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  4. J. M. Fernández Saldaña, “La Fotografía en el de de Rio La Plata...,” La Prensa (Buenos Aires), 26 de janeiro de 1936, terceira seção (não paginada, página 2), aborda o abade “Compte” (sic) em La Plata e L'Oriental na América do Sul; veja também Keith McElroy, “The daguerrean Era in Peru 1839–1859”, History of Photography, 3 (1979), 111–123.
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  5. Adrien Carré, 'La singulière histoire de L'Oriental–Hydrographe', Bulletin, Comite Nantais de Documentation Historique de la Marine, N.2, 1970, pp.17–35. Um estudo excelente da viagem de L'Oriental (embora não mencione a daguerreotipia) permitindo que várias lacunas existentes na primeira versão deste ensaio sejam preenchidas, como foi previamente apresentado em um simpósio da European Society for the History of Photography, em junho de 1993. O autor agradece a William Main por gentilmente ter chamado sua atenção para o artigo de Carré, uma cópia de qual está disponível na Turnbull Libray, Wellington, NZ.
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  6. Lloyd's List (Londres), 09 de junho de 1838, 4.
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  7. A Biblioteca Nacional, em Paris, conserva o seu Extrait d'une Mémoire sur quelques changemens à apporter dans l'organisation de la marine... et la faiblesse de notre commerce maritime (Paris, 1839), como também Le Candidat... pours tous les échelons de la carrière de la marine du commerce, por A. Lucas (Vannes, 1850),  e um folheto de 26 páginas por “Lucas (Auguste) residente francês em Papeete”, Memoir sur les colonies français des Iles de la Sociètè (Paris, 1848).
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  8. Bulletin de la Sociètè de Geographie (Paris), vol.11 (sessão de 19 de abril de 1839), p.255. Comptes–rendus Académie des Sciences Paris, vol. 9 (sessão de 05 de agosto de 1839), p.223.
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  9. Bulletin de la Sociètè d'Encouragement pour l'Industrie Nationale (Paris), vol.38 (1839), pp.136, 139, 323.
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  10. 'Commerce: Note sur le voyage de circumnavigation entrepris par M. le capitaine Lucas....Montevideo, sous la date du 21 Février, Bulletin de la Sociètè d'Encouragement, vol.39 (julho de 1840), pp. 261–3.
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  11. Le Courrier Belge (Bruxelas), 13 de setembro de 1839, p.3.
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  12. Le Constitutionnel, 06 de setembro de 1839, pp.1–2.  Moniteur Universel, 08 de setembro de 1839, pp.1738–9.
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  13. 'Description du procédé de M. Daguerre, et de la manière d'en faire usage', Bulletin de la Sociètè d'Encouragement, vol.38, N.423 (setembro de 1839), pp. 342–9, e duas pranchadas dobradas (N.774, 775). Mais informações sobre Daguerre neste encontro aparecem nas páginas 341–2, 364, 378. Também no mesmo boletim, pp. 325–341, está a conferência de Arago sobre daguerreotipia, em 19 de agosto, republicada a partir de Comptes–rendus Academie des Sciences.
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  14. Uma página do prospecto está reproduzida no texto de A. Carré, bem como trechos foram publicados em Bruxelas em L'Indépendant, 11 de julho de 1839, p.1.
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  15. O navio L'Oriental foi construído em 1835. Antes de Lucas utilizar a embarcação, foram realizadas duas viagens prévias em meados de 1837, ambas de Nantes a Bourbon e Mauritius e regresso, retornado ao Loire em 16 de junho de 1839. Lloyd's List, 10 de abril de 1838, 3; 09 de junho de 1838, 4; 04 de março de 1839, 3; 22 de junho de 1839, 2. Sobre disposições financeiras para a viagem de Lucas, veja Gazette des Tribunaux (Paris), 20 de agosto de 1840, p.1022.
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  16. A. Carré, 1970, p.25.
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  17. A viagem de L'Oriental sob comando do Capitão Lucas, a partir de Nantes, em 02 de outubro de 1839, até o naufrágio em 23 de junho de 1840 está registrada nos relatórios sobre navegação disponíveis na imprensa: L'Indépendant (Bruxelas), 11 de julho de 1839, 1; 24 de outubro de 1839, p.2; Diário do Governo (Lisboa), 08 de outubro de 1839, 16 de outubro de 1839; Lloyd's List, 11 de novembro de 1839, coluna 10; 29 de janeiro de 1840, 4; 18 de fevereiro, 7; 29 de agosto, 7; 10 de setembro, 11; 29 de setembro de 1840, 14.  'Naufrage de L'Oriental–Hydrographe',  L'Indépendant, 03 de outubro de 1840, p.1; 04 de outubro de 1840, p.2.
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  18. Joubert e Murphy atuaram como agentes de navios franceses: Jack Cato, The Story of the Camera in Australia, Melbourne: Georgian House 1955, pp. 1–2.  Veja também o verbete 'D. N. Joubert '  em J. Kerr (editor), Dictionary of Australasian Artists, Melbourne: Oxford University Press 1992.
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  19. Sidney Morning Herald, 21 de março de 1843, 3. Anúncio sobre leilão de propriedades de D.N. Joubert a ser realizado em sua residência, em Macquarie Place, no dia 23 de março de 1843. Sandy Barrie, de Sidney, chama a atenção para este leilão, em seu texto 'Historical retrospective, George Barron Goodman (Australia's first professional photographer)', edição do autor, Sidney 1992,  9, 31. Veja também o artigo de Barrie 'G. B. Goodman, Australia's First Daguerreotypist', The Daguerreian Annual 1995 (Daguerreian Society: Pittsburgh), pp. 173-8.
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  20. Lloyd's List, 16 de fevereiro de 1841, 10.
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  21. Justine, relatório 1842: S. [sic] M. Lucas (“demeurant à Belle–Isle”), “Extrait du rapport adressé au ministre de la marine par le capitaine Lucas, commandant le navire La Justine, de Bordeaux, sur les circonstances de son voyage dans l'Océanie, en 1837 [-] 1841”, Annales Maritimes et Coloniales (Paris), Partie 2 (não oficial), 1842, vol.2, 496-503.
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  22. Lloyd's List, 01 de fevereiro de 1838, 2; 24 de fevereiro de 1838, 2; 30 de maio de 1838, 3.
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  23. Lloyd's List, 12 de fevereiro de 1839, 3; 22 de junho de 1839, 2; 29 de junho de 1839, 3; 03 de setembro de 1839, 3; 04 de outubro de 1839, 7.
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  24. Sydney Herald, 08 de julho de 1839, p.2; Lloyd's List, 12 de dezembro de 1839, 6; 20 de maio de 1840, 7;   Sydney Herald, 17 de fevereiro de 1840, p.2a,c, 24 de fevereiro de 1840, Suplemento, p.2.
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  25. Sydney Herald, 08 de abril de 1840, p.2, Lloyd's List, 12 de janeiro de 1841, p.8.
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  26. Justine, relatório, 1842, p. 498.
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  27. Lloyd's List, 16 de fevereiro de 1841, 10;  Sydney Gazette,  30 de março de 1841, p.2;  Sydney Herald, 30 de março de 1841, p.2;  06 de abril de 1841, p.2.
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  28. A. Carré, 1970, p.32.
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  29. Carta datada de 15 de setembro de 1841, de “Auguste” Lucas, no Taiti, para Joubert, em Sidney, mencionada em Léonce Jore, Un Belge au service de la France dans l'Ócean Pacifique: Notice Historique et Biographique concernant J. A. Moerenhout (Paris: Maisonneauve, 1944), 107–9.  Jore cita como fonte desta carta - “Archives du Ministre des Affairs ètrangères, Nouvelle–Zélande Pièces diverses vol. 4”.
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  30. Justine, relatório, 1842, p.499.
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  31. A. Carré, 1970, p.32.
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  32. Reino Unido, Parliamentary Papers (Commons), 1841 vol.17, Paper 311 'Correspondence relative to Colonization of New Zealand', pp.7–9.
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  33. T. Lindsay Buick, The French at Akaroa (Wellington: New Zealand Book Depot, 1928). Trata atentamente a inoportuna Nanto-Bordelaise Company cujo grupo de emigrantes deixa a França em 08 de março precedida do navio de apoio L'Aube em 19 de fevereiro de 1840, ambos desconhecendo que a soberania britânica sobre a Nova Zelândia havia sido recentemente proclamada.
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  34. Sydney Herald, 04 de junho de 1841, p.2: “Para Bourbon (sic) [!], ontem, o navio francês, Justine, Capitão Lucas”. Lloyd's List, 04 de novembro de 1841, 8: “Valparaiso, 24 de julho, Justine, Lucas, chega de Sidney”.
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  35. Lloyd's List, 08 de dezembro de 1841, 11; 03 de fevereiro de 1842, 6; 07 de março de 1842, 10; 09 de março de 1842, 5.
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  36. A. Carré, 1970, p.32.  Léandre Le Gallen, Belle–Ile, histoire politique, religieuse et militaire, moeurs, usages, marine, pêche, agriculture, biographies belliloises (Vannes: Lafolye frères, 1906), pp. 624–5.
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  37. Patrick O'Reilly, Les Photographes à Tahiti et leurs œuvres 1842–1962, (Paris: Société des Océanistes, Musée de l'Homme, 1969), 11.
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  38. Léonce Jore, L'Océan Pacifique au temps de la Restauration et de la Monarchie de Juillet 1815–1848   (2 vols, Paris: Bessons et Chantemerle, 1959), tomo 2,  257–8, 266–270, 296–7. L. Jore, Un Belge au service de la France... (1944), 104–116.  P. O'Reilly, Tahitiens, Supplément, publicações da Société des Océanistes N.17 (Paris: Musée l'Homme, 1966), 585–6.  A. Lucas, Memoir..., (Paris 1848).
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  39. Honoré Laval: Mémoires pour servir à l'Histoire de Mangareva, ère chrétienne 1834–1871, editado por C. W. Newbury e P. O'Reilly,  Publicações da Société de Océanistes N.15 (Paris: Musée de l'Homme, 1968),  234–8.
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Abertura



How do you say: da-guer-re-o-ty-pe ?



A chegada da daguerreotipia ao Brasil - e o registro da realização do primeiro daguerreótipo na America Latina - é um marco conhecido. No entanto, este episódio presente em tantas versões da história da fotografia no Brasil nunca foi objeto de investigação mais detalhada. Varias perguntas em aberto não foram aparentemente objeto de pesquisa. Não apenas a usual questão sobre o destino destas primeiras imagens, mas outras de igual relevância.

O navio que transportava Compte não teria atracado anteriormente em outro porto brasileiro, como seria usual? Talvez Salvador ou Recife? Não teria realizado ali nenhum registro em daguerreotipia? No caso de resposta negativa, por qual motivo? Porque Compte teria esperado quase um mês para realizar suas imagens no Rio de Janeiro onde se encontrava d esde o Natal?

Poucos dados est´ disponíveis sobre Compte. Talvez apenas sua passagem por Montevidéu, mencionada por Sara Facio em seu livro La fotografía en la Argentina (La Azotea, 1995), que apresenta a curiosa forma de chegada do invento a Buenos Aires - unicamente através de relatos enviados de Montevidéu -, isolada pela esquadra francesa, em bloqueio que visava enfraquecer o governo de Rosas.

A falta de pesquisa sobre o episódio é preocupante. Em especial se lembrarmos da fronteira entre mito e história que parece ser alimentada por este desinteresse. Além disso, Compte é, entre nós, o primeiro elemento de uma longa forma de produção fotográfica que se instalará - a do fotógrafo ambulante.

Esse ciclo fundamental em que profissionais - especializados exclusivamente ou não em daguerreotipia/fotografia - circulam por todo o território nacional a partir da costa litorânea marca a difusão efetiva de um novo meio de representação.

Foram eles que introduziram efetivamente e ensinaram-aprenderam-criaram formas de uso e compreensão do novo instrumento.

Nao h´ muito além de curiosidades sobre este momento-chave na produção historiográfica brasileira. Outro aspecto peculiar deste ciclo é também ignorado - a forma como estes profissionais estabeleciam em suas viagens roteiros entre alguns países vizinhos. Apenas em 2002, Boris Kossoy em seu Dicionário histórico-fotográfico brasileiro (IMS) traria informes mais detalhados sobre diversos fotógrafos de fronteira, atuando em especial na região do Prata. Nossa historiografia revela assim o seu lado ensimesmado, provinciano.

O ensaio apresentado aqui, de autoria de Rupert Derek Wood, é uma feliz descoberta.



Sobre o autor:

De origem, pesquisador em microscopia eletrônica na área de biomedicina, em Londres, Derek Wood dedica-se há alguns anos aos estudos sobre as pesquisas que resultaram no desenvolvimento da daguarreotipia e na calotipia durante a década de 1830. Mantém um
site pessoal que reúne diversos ensaios sobre o período (embora com severos problemas de conexão internet).

Suas pesquisas destacam não apenas questões relativas ao desenvolvimento técnico, mas em especial a difusão do novo meio e disputas legais sobre os processos.



O panorama apresentado aqui permite estabelecer algumas hipóteses para as perguntas levantadas de início. Mas vai além disso.

Primeiro, estabelece um elo inesperado entre a difusão da fotografia na América Latina e a Austrália. Traça um quadro dessa empreitada entre o épico e o rocambolesco (em especial, introduz ainda o quadro político do colonialismo no Pacífico).

Recomenda-se ao leitor a leitura dos apêndices que trazem os roteiros percorridos pela duas embarcações que compunham a expedição. Acrescentam detalhes inesperados como a descrição da apresentação do novo aparelho à rainha Maria da Glória, de Portugal, irmã mais velha do futuro imperador brasileiro Dom Pedro II, que conheceria o invento meses depois com os olhos de um adolescente de 14 anos (ainda que futuro imperador).

Sobre algumas das perguntas iniciais é enfim possível supor que o contexto da expedição em sua partida logo após a disponibilização dos primeiros equipamentos para daguerreotipia submetia as condições de trabalho a severo controle.

Muito provavelmente Compte e Lucas em suas primeiras (eventuais) paradas em Salvador e Recife teriam tentado restringir a realização de imagens a situações que permitissem conquistar futuros clientes. Com alguma certeza, disporiam de um estoque limitado de chapas e suprimentos, o que exigia um planejamento, ainda mais considerando a longa viagem pela frente.

Assim neste quadro, seria coompreensível que chegando ao Rio esperassem como circunstância privilegiada para anunciar o invento uma sessão perante a Corte.

Hipóteses, meras hipóteses para muito trabalho a fazer.


O autor Derek Wood recomenda, como complemento, uma visita ao site Fotohistoria, de R. Ferrari, sobre história da fotografia na Argentina e na América Latina. Estão disponíveis em espanhol dois textos de 1840, período em que L'Oriental chega a Montevidéu. O primeiro registro sobre a técnica da daguerreotipia no Uruguai e as demonstrações por Louis Comte foram feitos por Florencio Varela no Correio del Plata, em 04 de março de 1840, e por Teodore Vilardebó, em El Nacional, de Montevidéu, em 06 de março de 1840.


Ricardo Mendes






FotoPlus expresses gratitude to Mr. Derek Wood for the permission to publish his article.
Agradecemos ao estímulo contínuo e colaboração do poeta uruguaio Alfredo Fressia, correspondente do suplemento El Pais cultural