Curiosa profissão, esta. A maioria das profissões exige engajamento em determinado assunto. Sapateiro
engaja-se em sapatos, construtor civil em casas, cientista em física, ministro no governo. Quanto ao fotógrafo, este se engaja na
máquina fotográfica. que não é assunto, mas instrumento. E como se o sapateiro se engajasse em agulhas, o construtor
em bulldozers, o físico em microscópios, o ministro em papeladas. Ou, para quem considera fotografia como ’arte’: como se o escultor se
engajasse, não na pedra, mas no martelo. Obviamente, ser fotógrafo não é ter profissão como o são as outras.
Concentra o interesse do fazer no instrumento, não na obra. E isto por duas razões distintas: (1) a máquina fotográfica é
urn tipo novo de instrumento, e (2) a fotografia é um tipo novo de obra.
(1) Desde que o homem é homem, recorre a utensílios para modificar o mundo. Os utensílios (facas, lanças, potes) são
prolongamentos do corpo humano, e imitam órgãos do corpo (dentes, braços, palmas). 0 homem está cercado por seus
utensílios ao enfrentar o mundo. Cercado por "cultura". Com a revolução industrial. esta situação se
transforma. Os utensílios passam pelo crivo da ciência e tomam-se instrumentos de alto custo e de tamanho grande: facas se tomam tornos,
lanças foguetes, potes silos. Não mais cercam o homem. mas passam a formar, eles próprios, centros (industriais e administrativos).
A humanidade se divide em dois: na parte possuidora de instrumentos (capitalistas), e na parte possuída pelos instrumentos (proletariado). A
relação ’homem-utensilio’ pré-industrial vai ser invertida. 0 instrumento não mais funciona em função do homem,
mas o homem passa a funcionar em função do instrumento, seja ele proletário ou capitalista. A isto se chama ’trabalho alienado’.
Máquinas fotográficas são instrumentos pós-industriais, aparelhos. Transformam a relação ’homem-utensilio’
tão radicalmente, que não mais é possível falar-se em ’trabalho’ no significado tradicional do termo. Isto se deve à sua
impenetrável complexidade. São ’caixas-pretas’. Quem recorre a aparelhos. sabe apenas confusamente o que se passa no interior de tal caixa.
Sabe manipular apenas seu ’input’ e ’output’. Pois os aparelhos tendem a ficar progressivamente menores e mais baratos. Alem de mais eficientes e
onipresentes. De maneira que se toma sempre mais fácil e acessível sua manipulação, e sempre mais difícil
compreende-los. Devido à facilidade da manipulação os aparelhos parecem funcionar em função do homem.
Devido à sua complexidade parece que o homem funciona em função dos aparelhos. Na realidade, homem e aparelho se co-implicam, e
vão formar um amarrado de funcionamento: a máquina funciona em função do fotógrafo, se, e somente se, este funcionar
em função da máquina.
Pois o fotógrafo se engaja precisamente em tal amarrado de funcionamento. Quer descobrir, experimentalmente (e também teoricamente),
quais as possibilidades oferecidas por tal co-implicação ’homem-aparelho’. Para ele, o problema industrial da divisão do trabalho (quem
possui os instrumentos, e quem deve possuí-los?), não mais se coloca. 0 problema a ser resolvido é o do funcionamento. Quem
dominará: será o aparelho quem dominará o homem, ou será o homem quem dominará o aparelho? Tornar-se
fotógrafo profissional é procurar resolver este problema.
(2) Desde que o homem é homem ’produz obras’, isto é, imprime informação sobre pedaços do mundo. Imprime a forma
do sapato sobre o couro, a da casa sobre o tijolo. Tal informação materializada vai ser consumida: a casa ruirá, o sapato será
gasto. Mas enquanto isto não acontecer. a informação é conservada na obra. Isto é o ’valor’ da obra: ser ela conserva de
informação, a qual pode ser materialmente transportada ~ trocada por outra. E é possível medir tal ’valor’ pela escala do dinheiro.
Com a revolução industrial, esta situação se transforma. A informação não mais é diretamente imprimida
sobre pedaços do mundo, mas passa pelo crivo da ferramenta. 0 sapateiro não mais imprime a sua idéia do sapato sobre o couro, mas o
engenheiro imprime tal idéia sobre a ferramenta, que a imprime sobre o couro. A ferramenta contém doravante o ’modelo’ do sapato, da casa
pré-fabricada. E a ferramenta que conserva a informação e a obra passa a ser apenas um múltiplo estereotipado que
irradia a informação sobre os consumidores. 0 valor se transfere da obra para a ferramenta. Por isto as obras industriais ficam progressivamente
mais baratas. E o valor se acumula em mãos dos proprietários das ferramentas. Sociedade de consumo é isto. E o valor conservado na
ferramenta não é facilmente transportável e trocável. Isto é o problema da ‘transferência de tecnologias’.
Fotografias são obras pós-industriais, informações quase isentas de suporte. 0 papel que guarda e transporta a
informação fotográfica não é verdadeiro suporte. Fotografias são copiáveis de um papel para outro.
Negativos não são autênticas ferramentas. São, eles próprios, copiáveis. 0 ’valor’ não está nem na
fotografia, nem no negativo. Está no ato de fotografar, naquele amarrado de funcionamento. Tal valor não é nem transportável
nem trocável, e não pode ser medido em dinheiro. 0 que mais é, tal valor é, de maneira curiosa, ’eterno’: jamais
será gasta a informação produzida, por ser eternamente copiável. Isto contrasta, paradoxalmente, com a efemeridade do ato
fotográfico, e com a efemeridade da fotografia e do negativo.
Pois o fotógrafo está engajado precisamente na produção de tal valor ’eterno’. Isto é: na efemeridade do seu ato.
Esta engajado na produção de um máximo de informações, e na produção de informações
sempre novas. Com efeito: o fotógrafo executa dança em tomo do mundo, para, munido de máquina, produzir um máximo de
informações, sempre novas a respeito do mundo.
Por isto, está ele desinteressado na ’obra’. Não pretende mudar o mundo, como o faz o trabalho tradicional, mas pretende mudar os outros,
dando-lhes informação a respeito do mundo. Para ele, o problema industrial (como deve ser o mundo?), não mais se coloca. 0 problema a
ser resolvido e o da informação: qual deve ser a atitude do homem informado a respeito do mundo? Tomar-se fotógrafo
profissional é procurar resolver este problema.
A profissão fotográfica é curiosa, por ser profissão pós-industrial em contexto ainda industrial, e por não se
enquadrar bem em tal contexto. Isto é a razão das dificuldades profissionais com os quais o fotógrafo se confronta.
Vilém Flusser
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Fontes
FotoPlus agradece à senhora Edith Flusser e a revista Iris por autorizarem a inclusão deste artigo nesta edição do boletim Páginas Negras.
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