Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Ficções Flusserianas:
sobre Ficções filosóficas,
de Vilém Flusser


sobre "Livros"

Simone Greco

É preciso, antes de tecer algumas considerações, atentar para a forma como Vilém Flusser elabora o seu pensamento, somente assim, torna-se menos árdua a tarefa de desvendar seu texto. O autor, em Livros, realiza uma estruturação curvilínea, esférica. Ou seja, após um breve comentário, verifica ser impossível responder à pergunta: "Que é um livro?" Desenvolve um raciocínio associativo, elaborando conceitos e idéias para, ao final do ensaio, reafirmar a constatação inicial.

Vilém Flusser inicia o ensaio mencionando a essência antitética que se esconde nos livros de uma biblioteca: ao mesmo tempo que se assemelham a um lago calmo, tranqüilo e conhecido, ganham contornos obscuros e oferecem algum perigo por serem a porta de entrada para outros mundos e situações. A sensação agradável que a biblioteca desperta explica-se pela característica dúbia dos livros, que, devido à sua natureza, podem ser meros objetos de decoração, quando deixados em paz, mas podem ser também convites à aventuras, quando abertos e lidos. Assim, entende-se que livros são fenômenos, porque são "transformáveis". Ou seja, podem adquirir diversas funções, porque são "provocações provocáveis" que exercem ou possuem uma presença, mas que não se consegue defini-la ou compreendê-la exatamente devido, talvez, a esse seu aspecto fenomênico.

Após lançar esses conceitos, o autor parte para a investigação, para a análise existencial que distingue coisa e outro. Somente mais adiante irá relacionar essa análise com as considerações apresentadas anteriormente, completando, aos poucos, sua trajetória circular.

Flusser distingue coisa de outro a partir de suas diferenças. Define coisa como fenômeno lá no mundo. O uso do advérbio de lugar nos faz supor que esse mundo a que ele se refere é aquele que se encontra além da biblioteca, alheio à imagem do lago conhecido que oculta perigos ignorados. Trata-se do mundo empírico, objetivo, constituído do somatório das coisas. Essas coisas-fenômenos são manipuláveis, podem ser manuseadas, alteradas, i.e., compreendidas. O autor afirma que toda situação conflitiva, que se configure em um problema a ser resolvido é coisa, um obstáculo a ser vencido rumo ao futuro (à morte). Se pode ser manipulado, é coisa, logo não é problema.

Há, porém, fenômenos que ultrapassam essa esfera, não podem ser decifrados. E, segundo Flusser, não podem ser compreendidos, porque funcionam justamente como o outro. É como se nós nos olhássemos no espelho, reconhecêssemos o reflexo e constatássemos ser o nosso outro, portanto, impossível de ser compreendido ou manipulado. O autor refere-se a fenômenos que ocorrem e com os quais nos identificamos. A canção suave que remete a uma lembrança qualquer, a pessoa que nos faz recordar de alguém que conhecemos em outra época são coisas que não podemos compreender ( "se compreender significa manipular"), porque nos reconhecemos nelas, identificamos nesses fenômenos partes da nossa vida. Nesses fenômenos, encontram-se os nossos outros, por isso não podemos manipulá-los, entendê-los, afinal, apresentam algo familiar, parte da nossa essência, do nosso Eu. Como, portanto, decifrá-los?

O encadeamento de tal análise culmina com a constatação do autor que existem inúmeras pessoas com as quais nos encontramos, mas que poucas são o nosso outro. É plausível tal consideração, uma vez que é realmente difícil ver-se ou reconhecer-se em outra pessoa, achar alguém que compartilhe das mesmas opiniões ou utopias. Partindo desse pressuposto, Flusser afirma que há outros que não são gente. Ou seja, é possível, talvez até mais comum, encontrar o outro num fenômeno chamado livro.

Vale a pena ressaltar que a dubiedade inicial estabelecida em relação aos livros é retomada na trajetória que se estabelece. Os livros são coisas, fenômenos manipuláveis, que ora decoram a estante e ora convidam à aventuras. Como podem, então, ser espelhos, nos quais nos reconhecemos, se são manipulados? Como compreender o fenômeno livro? As indagações são inevitáveis. Como se reconhecer em um livro? Em um fenômeno que manipulamos? Afinal, coisa não é fenômeno manipulável e outro fenômeno não manipulável?

Para tentar responder a essas questões, Flusser tece algumas considerações associando os homens aos livros. Afirma que os homens não são iguais, apresentam características que os distinguem uns dos outros e que as ciências antropológicas " não "devem" manipular homens, mas massas a fim de permitir que sejam seus componentes reconhecidos como homens." É interessante atentar para o uso das aspas no verbo dever da citação anterior. O tom irônico do autor está presente no texto, quase imperceptivelmente, pois, na verdade, o que se declara é que os homens são manipulados como algo uniforme, não possuem particularidade, não são indivíduos.

Flusser continua construindo seu raciocínio. Após divagar sobre a antropologia e a forma como os homens são estudados, argumenta que a manipulação humana ocorre devido à explosão demográfica, que é idêntica à explosão demográfica de livros. Inúmeros romances, livros de auto-ajuda e esotéricos são produzidos anualmente. Trata-se de textos descartáveis, de leitura fácil, consumidos com avidez por quem procura entretenimento, mas ilude-se considerando a diversão "literária" melhor ou "mais culta" que filmes policiais e de aventura em cartaz nos cinemas. Muitos desses livros formam uma turba barata, tornando o livro coisa de massa. É válido ressaltar que Flusser não critica a popularização da leitura em si, mas a massificação do livro, o grande número de obras semelhantes que apresentam uma fórmula repetitiva e, mesmo assim, atingem um público diversificado, mantendo-se no topo da lista dos mais vendidos. Estabelecidos os aspectos que aproximam homens e livros, define ambos como coisas rapidamente manipuláveis, jogáveis no lixo. Ressalta, porém, que em meio à literatura barata, descartável, há os livros que, assim como os homens, fazem parte de clãs nos quais o autor se reconhece.

Para tentar nos fazer entender como é possível reconhecer o outro em um fenômeno manipulável chamado livro, Flusser argumenta que livros são coisas específicas, meios pelos quais alguns homens se comunicam com outros. E que, portanto, quando lemos, nos reconhecemos nos autores e não nos livros. Tal afirmativa provoca uma certa inquietação, principalmente se considerado o método analítico consagrado pela academia. Quando se realiza a análise de uma obra literária, geralmente se enfatiza a obra em si. Analisa-se o conteúdo, suas relações sociais, ideológicas, históricas; costuma-se ocultar ou evita-se mencionar a biografia do autor. Existe uma grande preocupação em negar, condenar ou simplesmente ignorar qualquer relação entre a obra - texto literário ficcional - e seu autor. Ao afirmar que quando lemos um livro não nos reconhecemos nele, mas sim em seu autor, o que pretende Flusser? Criticar a forma como a academia privilegia a análise literária? Propor uma análise que não ignore o fenômeno autoral? Ou simplesmente nos inquietar?

Abandonando, porém, a linha de raciocínio suscitada anteriormente, o autor declara que homens e livros são coisas ultrapassáveis e que suas explosões demográficas são prova de sua eliminação iminente. Reitera que tal extinção ocorrerá porque, enquanto meios de comunicação, homens e livros estão em crise. Hoje, existem livros facilmente assimilados e logo esquecidos e, para estabelecer comunicação, existem os computadores, a Internet que são mais rápidos e eficientes. Assim, segundo o autor, homens e livros são coisas, porque além de manipuláveis são descartáveis, facilmente superados.

Procurando enfatizar suas considerações, Flusser faz alusão à teoria darwinista de seleção natural das espécies. Acredita que os homens não passam de coisas, porque, com a explosão demográfica atual, torna-se indispensável selecionar os indivíduos. Num mundo globalizado como o nosso, não basta falar e expressar-se bem em um único idioma ou fincar raízes em um mesmo lugar. É preciso ampliar o conhecimento, expandir as fronteiras de atuação profissional. A explosão demográfica humana a que se refere Flusser provocaria o fim iminente da espécie, uma vez que a concorrência desenfreada acarretaria na substituição do homem, que se tornaria dispensável. Essas considerações, contudo, não são definitivas, pois, a partir do momento que nós nos reconhecemos em algum fenômeno (homem ou livro), esse fenômeno torna-se o nosso outro.

Flusser evidencia que podemos nos reconhecer em um livro, mas que, ao conhecermos o autor desse livro, podemos não reconhecê-lo como o autor do livro com o qual nos identificamos e muito menos nos reconhecermos nele (autor). O mesmo se, por acaso, nos encontrássemos com o Autor dos homens, poderíamos não reconhecê-Lo e não nos reconhecermos n’Ele. Na verdade, o que se pretende demonstrar é que tanto homens como livros são capazes de interferirem na ação autoral, por isso nem sempre se consegue reconhecer o autor em cuja obra nós nos identificamos. No homem, por exemplo, a informação genética é posta pelo Autor e condicionada por seu portador. Tal condicionamento é amplo e será o seu portador que dará significado a tal mensagem. O mesmo ocorre com o livro que contém informação "aberta", i.e., podemos interpretar o texto literário, conferindo-lhe um significado diferente daquele pretendido pelo autor.

Segundo Vilém Flusser, homens e livros são fenômenos enigmáticos, que podem ser decifráveis. Insistimos em desvendar seus segredos, em torná-los legíveis, porque não podemos aceitar que não haja significado no mundo objetivo, por isso procuramos ler o mundo, compreender seus significados, fazemos associações, deduções, criamos símbolos numa tentativa de desvendá-los. Mas essas tentativas se tornam vazias e insustentáveis quando se percebe que o significado encontrado não é confiável, uma vez que seu próprio descobridor pode tê-lo moldado à sua maneira. Os significados que descobrimos das coisas que fazem parte do mundo objetivo podem não ser seus significados reais, uma vez que não há como ter certeza que as respostas encontradas não estão "contaminadas", ou completamente modificadas, pela inferência do próprio analista. Além disso, a intencionalidade descoberta pode não ser igual à posta lá pelos autores, porque livros e homens possuem uma certa autonomia.

Flusser, entretanto, afirma que homens e livros são fenômenos que podem ser considerados tanto coisas ( parte do mundo objetivo) quanto outros ( sujeitos nos quais nos reconhecemos). Consegue, assim, amainar as angústias e inquietações provocadas pelas afirmações anteriores. O mundo objetivo continua sendo constituído por coisas que não possuem enigmas e, portanto, não têm significado. Mas há nesse mundo também os outros, fenômenos (livros ou gente) nos quais nos reconhecemos. A diferença fundamental é que os homens estão abertos e devem ser fechados para poderem ser manipulados e, para poderem ser considerados coisas, é preciso contemplá-los; já os livros estão fechados e devem ser manipulados para serem abertos. A comparação visa demonstrar a capacidade que muitas ideologias possuem de guiar a humanidade, tornando-a mera decoração, facilmente manipulável, assim como são os livros.

Segundo o autor, inúmeras são as utopias que, camufladas por um véu de sonho e idealização, empenham-se em manipular a humanidade, transformando-a em uma biblioteca com todas as aberturas viradas contra a parede, e todas as costas viradas para o possuidor da biblioteca.

Os mentores e propagadores de idéias revolucionárias, que pretendem subverter a "ordem mundial", utilizam-se da escassez de conhecimento e de cultura da massa uniforme que, ávida por sonhos, deixa-se seduzir por falsas teorias libertárias. Assim, os homens se tornam objetos de decoração, deixam-se manipular sem perceber que o fazem. Recentemente, dois jovens, com o objetivo de atrapalhar as negociações de paz entre judeus e palestinos, explodiram seus corpos em um ataque suicida. A família não lamentou, porque sente orgulho de seus mártires, acredita que eles morreram em nome de Alá.

A utopia religiosa propagada por grupos radicais, que esperam e anseiam pela terra santa ou prometida, provocou morte bárbaras em ambos os lados. Os homens que morrem por essas ideologias são decoração de parede, acreditam piamente no que fazem, pensam estar certos. Agem como autômatos, teleguiados por doutrinas que consideram verdades absolutas. Não há como questionar a veracidade da fé dessas pessoas, o que se pretende é exemplificar como algumas ideologias transformam seres pensantes em objetos manipuláveis nos quais nós não nos reconhecemos.

Flusser termina sua trajetória esférica aproximando-se do seu início. A imagem de bem-estar provocada pela biblioteca, onde estão abrigados livros que podem se transformar em fenômenos, a partir do momento que passamos a reconhecer neles o nosso outro, perde um pouco de sua significação. Os homens, assim como os livros, não exigem mais ser decifrados, passaram a ser apenas enfeites que mudam de lugar, posição e aspecto conforme o ritmo das mãos que o guiam. Por isso, torna-se quase impossível nos reconhecermos, hoje em dia, em algum fenômeno. Essa ausência de identificação provoca solidão, angústia e talvez explique muito da miséria ideológica que se configura nesse fim de milênio.

A guerra santa de alguns grupos radicais nas fronteiras de Israel nos parece absurda, quase uma tolice, porque não possuímos ideologias libertárias como eles. Não nos reconhecemos no Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, não nos identificamos com as minorias, portanto, não seguimos ou propagamos utopias. Não temos ídolos, metas, sonhos, somos conduzidos pelas leis de mercado, a ordem vigente em nossos tempos. Afirma Flusser que somos (nós e os livros) desprovidos de significação, não exigimos mais ser decifrados, julgados, condenados e queimados. Somos, hoje, meros consumidores de roupas famosas, sapatos de griffe, carros importados, por isso a dificuldade de nos reconhecermos em alguém ou em alguma coisa. Aquele que consegue notar a situação em que nos encontramos, sente-se solitário, único e destoante da maioria.

Procurando afugentar essa solidão provocada pela dificuldade de se reconhecer em algum fenômeno, Flusser propõe que abramos um livro qualquer de nossa biblioteca e tentemos nos identificar neste objeto, nesta coisa para, assim, transformá-la em nosso outro. Se, por acaso, isso ocorrer e nós realmente nos reconhecermos neste livro, virá a inevitável pergunta: Que é um livro?

O autor finaliza o ensaio com a mesma indagação que o provocou, procurando, dessa forma, enfatizar a trajetória circular utilizada e, evidentemente, o seu objetivo principal: nos fazer compreender a natureza fenomênica e transformável de homens e livros.


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