Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Ficções Flusserianas:
sobre Ficções filosóficas,
de Vilém Flusser


SOBRE "livros"

RACHEL FÁTIMA DOS S. NUNES

Vilém Flusser começa seu ensaio com a seguinte pergunta: Que é um livro? Procurando analisar esta curiosa presença chamada livro, o filósofo investigará a sensação que o leitor sente quando está em sua biblioteca: lá ele se encontra inteiramente só e, ao mesmo tempo, inteiramente cercado por outros. Cercado por este objeto que deliberadamente se transforma em outro, o leitor, ao manusear um livro, nele se reconhecerá, pois deste objeto saírão vários outros homens que dialogarão com ele e que serão "os seus outros". Mas, podemos ter este choque do encontro com o outro, tanto com o fenômeno chamado livro quanto com a matéria humana denominada homem. Só que, dependendo das circunstâncias da vida, muito pouca gente pode ser "meu outro", enquanto que muitos livros podem de fato ser "meus outros".... O fato do objeto livro significar uma espécie de presença que acompanhará o leitor nos seus vários momentos da vida, onde ele pode assim se reconhecer, faz desta magnífica invenção do homem um companheiro de viagem para seu leitor. Abrindo as páginas de um livro, o leitor poderá conhecer vastos panoramas de outros países, outras culturas, além de poder visualizar as salas, as roupas e os gestos das personagens do autor. Em suma, no dizer publicitário: "Quem Lê, Viaja".

O escritor e professor Vladimir Nabokov um dia disse a seus alunos que um bom leitor, um leitor maior, um leitor ativo e criativo é o releitor. Quando se lê um livro, pela primeira vez, o laborioso processo de movimentar os olhos da esquerda para a direita, linha após linha, página após página, esse complicado trabalho físico sobre o livro, esse processo de captar, em termos de espaço e tempo, o assunto do livro é uma barreira entre nós e a apreciação artística. Quando olhamos um quadro, não temos de mover os nossos olhos de maneira especial, mesmo se, como num livro, a pintura contém elementos de profundidade ou seguimento. O elemento tempo realmente não está presente num primeiro contato com uma pintura. Na leitura de um livro devemos ter tempo para nos acostumarmos com ele. Com relação à leitura, o corpo humano não dispõe de nenhum órgão capaz de, primeiro, abranger o todo ( como no caso, da pintura, os olhos sobre a tela ) e, depois, se fixar em cada um dos detalhes que irão compor os "meus outros" que pude encontrar no decorrer da leitura.

Livros, na visão de Flusser, são coisas mudas, inofensivas e obedientes, às quais, se e quando viradas, passam a ser convite à aventura, mas quando deixadas em paz são decoração de parede. Flusser também analisará como o objeto livro foi tratado no transcorrer da história: nas ditaduras, por exemplo, os livros são julgados, censurados, expurgados, condenados e até mesmo queimados. Nas modernas "democracias", apesar da inexistência de uma censura institucional, existem instrumentos econômicos de marginalização de livros e escritores, negando-lhes a produção dos livros e a publicidade, em razão de "critérios técnicos" no mais das vezes meramente eufemismos para mascarar os princípios ideológicos, éticos, estéticos e religiosos contra autores e livros.

Em um livro do norte-americano Ray Bradbury, vertido para o cinema pelo francês François Truffaut, encontramos transformada em fábula esta tensão entre as instituições e ideologias e a literatura: em uma sociedade que é controlada pelos órgãos de comunicação midiática, a palavra escrita representa perigo para a estrutura de poder dominante ( em uma breve cena exemplar, o personagem "lê" um jornal constituído apenas por sucessão de gravuras ), por fazer trafegarem idéias contraditórias, pluridimensionais, polifônicas. A comunicação execra todo conteúdo incontrolado; todos os personagens do filme se relacionam apenas através de fórmulas já balizadas, lugares comuns, chavões básicos. Em uma seqüência que exemplifica e modela o gênero de comunicação proposto pela mídia futurista como interativo, vemos a grande tela de televisão ( a exemplo de outra utopia de corte totalitário "1984 ", também transformada em filme ), que fica ligada durante dias inteiros na casa dos espectadores, oferecendo-lhes alguns programas que indicam a possibilidade de participação de todos como em uma "grande família". Entretanto, o personagem principal alerta a própria mulher que tudo não passa de uma grande manipulação do público, que parte de interesses e nomes comuns para levantar falsas questões que são ilusoriamente solucionadas pelo público. Além das fronteiras midiáticas e do totalitarismo político, a palavra e o livro como locus privilegiado delas prevalece sobre o entendimento soterrador das possibilidades de divergência e interdiscursividade.

Fazendo no ensaio uma comparação entre os homens e os livros, Flusser apresenta um ponto em comum e uma diferença fundamental entre ambos: enquanto ponto em comum, podem ser considerados tanto coisas ( partes do mundo objetivo ) quanto meus outros ( sujeitos nos quais me reconheço ); enquanto diferença fundamental, pode-se dizer que, para considerar os homens enquanto coisas, é preciso virá-los e abri-los. Os homens estão abertos e devem ser fechados para poder ser manipulados. Já os livros estão fechados e devem ser manipulados para ser abertos. Flusser considera que o ideal de muita utopia é manipular a humanidade de forma que se torne biblioteca com todas as aberturas viradas contra a parede, e todas as costas viradas para o possuidor da biblioteca. Em tais utopias os homens passam a ser decoração de parede assim como também são os livros de hoje. Nesta comparação filosófica, homens adquirem forma de livros e livros adquirem forma de homens. Dentro de um livro pode-se também conhecer a vida de vários homens e dentro dos homens podem existir vários livros, livros que ficaram guardados na memória de seus leitores. Flusser ainda diz que, quem está em sua biblioteca e contempla as paredes recobertas dos livros está vivenciando a utopia, a plenitude dos tempos... Mas os livros também podem armar emboscadas para os homens: estes livros que armam emboscadas são aqueles que estão na estante olhando para o leitor, denunciando que ele já os leu há tanto tempo que seria tempo agora de relê-los; e,também, livros que sempre este leitor simulou ter lido e que seria necessário finalmente decidir agora a lê-los de verdade.

Ao comparar os livros aos homens, o filósofo comentará que homens não deveriam viver em massas e os livros não deveriam ser vendidos a preços tão baratos a ponto de se tornarem coisa de massa. E neste caso, enquanto meios de comunicação, tanto os homens quanto os livros estariam em crise, devido à explosão demográfica. Afirma ainda que se a razão da presente manipulação desumana de homens por homens é a explosão demográfica dos homens, há igual explosão demográfica dos livros. Com seu barateamento e a reprodução de livros de bolso, ocorreria um barateamento de seu conteúdo para adaptar-se às características elementares de um produto de massa. Flusser ainda afirma que existem meios mais apropriados, onde os homens se comunicam com outros homens, do que os livros; estes meios são os canais de massa. Os canais de massa são, na opinião do autor, mais apropriados para os atos de comunicação do homem moderno do que os livros, já que, com a facilidade do mundo eletrônico das imagens, o homem se encontra mais envolvido com os sistemas de computadores e com os canais de televisão do que com o próprio texto impresso. Com esta constatação, pode-se até indagar se o livro do futuro talvez não seja mais um objeto que se possa ter a mão, visto que todos os meios de comunicação do homem já estão sendo mediados pelo mundo eletrônico. Investigando a visão um tanto apocalíptica de Flusser que constata que os livros estão em crise enquanto veículos de informação, procurarei me deter nesta discussão que Flusser levanta em seu ensaio, discussão esta que atualmente tanto aflige os teóricos da indústria cultural.

Contrariando a abordagem flusseriana, de que a explosão demográfica atual dos livros seria prova de sua eliminação iminente e que os livros são coisas ultrapassáveis, podendo até vir a ocorrer a substituição do mundo textual pelo mundo eletrônico das imagens, Roger Chartier, que escreveu recentemente o livro "História da Leitura no Mundo Ocidental", tem idéias precisas a respeito de temas como o futuro do livro e a revolução provocada pelo texto eletrônico. Diferente de Flusser, que temia que o excesso de livros pudesse colaborar para a sua extinção, assim como o mundo das imagens pudesse colaborar para a passagem do livro à tela do computador, Chartier não considera que um excesso causado por uma proliferação textual se tornaria intolerável a ponto de sairem de circulação os livros impressos. Chartier compara a revolução provocada pela passagem do livro à tela do computador com a revolução da substituição dos rolos da antiguidade pelo códex ou códice, o livro de páginas costuradas que conhecemos hoje. No entanto, o escritor ainda constata que Gutemberg também inventou uma nova técnica para produzir textos e reproduzir livros. Mas não mudou a forma, o suporte. O livro manuscrito e o impresso eram idênticos: objetos constituídos de folhas dobradas e encadernadas. Há portanto uma estrutura fundamental do livro que não muda nesta passagem. Mas hoje o que de fato muda é a estrutura mesma do texto que passa ser lido num novo objeto.

A transmissão eletrônica dos textos e as maneiras de ler que ela impõe indicam, atualmente, uma revolução da leitura, que afeta todos os leitores contemporâneos. Ler numa tela, de fato, não é ler num códex. A nova representação do escrito modifica, em primeiro lugar, a noção de contexto, substituindo à contigüidade física entre textos presentes num mesmo objeto ( um livro, uma revista, um jornal ) sua posição e distribuição em arquiteturas lógicas - as que governam os bancos de dados, os fichários eletrônicos, os repertórios e as palavras-chaves que tornam possível o acesso à informação. Ela redefine também a "materialidade" das obras, quebrando o elo físico que existia entre o objeto impresso e o texto ou textos que ele veicula, dando ao leitor, e não mais ao autor ou ao editor, o domínio sobre o contorno ou a aparência do texto que ele faz aparecer na tela. É,portanto, todo o sistema de identificação e de manejo dos textos que é transformado. Além disso, com o texto eletrônico, não somente o leitor pode submeter os textos a múltiplas operações ( ele pode indexá-los, anotá-los, copiá-los, deslocá-los, recompô-los, etc. ), como pode, ainda mais, tornar-se o co-autor. A diferença, imediatamente visível, no livro impresso entre a escritura e a leitura, entre o autor do texto e o leitor do livro, desaparece em proveito de uma realidade diferente: o leitor, diante da tela, torna-se um dos atores de uma escrita a várias mãos ou, pelo menos, encontra-se em posição de constituir um texto novo a partir de fragmentos livremente recortados e reunidos. O leitor portanto da era eletrônica pode construir a seu modo conjuntos textuais originais cuja existência, organização e aparência dependem dele. Mas além disso ele pode a qualquer momento intervir nos textos, modificá-los, reescrevê-los, torná-los sua propriedade. Assim, toda a relação com o escrito está profundamente modificada. A leitura tradicional, em nosso mundo contemporâneo, também sofre ao mesmo tempo a concorrência da imagem e a ameaça de perder os repertórios, os códigos e os comportamentos inculcados pelas normas escolares ou sociais. A essa primeira "crise" junta-se outra: a que transforma o suporte do escrito e que, de repente, obriga o leitor a novos gestos, a novas práticas intelectuais.

Se a forma de escrever um texto se modifica com o mundo das imagens eletrônicas, o gesto de escrever também passará por uma transformação; esta transformação foi investigada por Flusser, em seu livro "Os Gestos". O gesto de escrever com caneta esferográfica é totalmente diferente do gesto de escrever com máquina de escrever, que também se diferencia do gesto de escrever no computador. O escritor que convive com os aparelhos eletrônicos como um "funcionário" sabe que diante do gesto de escrever no computador, ele poderá ver a "virtualidade de sua introspecção" e poderá alterar o seu texto quantas vezes achar necessário fazer. Esta transformação do ato de escrever que se modificou com as novas tecnologias altera substancialmente o universo daquele que faz uso do computador para criar trabalhos de intenção artística. Além de ter alterado o gesto de escrever, a eletrônica, que permite a comunicação dos textos a distância, anula a diferença, até agora indelével, entre o espaço do texto e o espaço do leitor. Ela torna pensável o sonho antigo da Biblioteca de Babel imaginada por Borges, que não apenas conteria todos os livros já escritos, mas também os que poderiam ser escritos a partir de todas as combinações entre as letras do alfabeto; a Biblioteca de Babel sonhada por Borges tem a intenção de abarcar a universalidade do saber. De acordo com Roger Chartier, com as novas tecnologias esse sonho é pensável, não querendo ele dizer que seja possível concretizá-lo, porque há limitações de todo o tipo. Mas teoricamente é admissível. Separado de suas materialidades e de suas localizações antigas, o texto, em sua representação eletrônica poderia teoricamente atingir qualquer leitor em qualquer espaço. Supondo que todos os textos existentes, manuscritos ou impressos, sejam convertidos em textos eletrônicos, a disponibilidade universal do patrimônio escrito se tornaria possível. Qualquer leitor, onde estivesse, desde que se encontrasse diante de um aparelho de leitura conectado à rede que assegura a distribuição dos documentos informatizados, poderá consultar, ler, estudar qualquer texto, não importa qual tenha sido sua forma e sua localização originais.

Chartier ainda considera que a dificuldade de entender o presente tem gerado algumas inquietações, temores e obsessões, como as de Flusser, a respeito da substituição do livro impresso pelo mundo das imagens. Outra inquietação que ronda o ensaio de Flusser diz respeito ao medo do desaparecimento do livro e a crise em relação ao processo da leitura. Mas para Chartier, uma análise mais cuidadosa mostra que a revolução eletrônica não fará desaparecer os textos impressos. Para o autor, a profecia de Mcluhan a respeito de uma substituição do mundo textual dos livros pelo mundo eletrônico não corresponde à situação atual, pois o que se vê nas telas dos computadores são fundamentalmente textos. Sendo assim, não há por que acreditar no desaparecimento da cultura escrita. Houve apenas uma mudança na sua produção e transmissão. O século XXI verá a convivência entre três formas de textos: o manuscrito, o impresso e o eletrônico. Há uma relação entre certos gêneros de textos e a forma como esperamos lê-los. Seria, por exemplo, difícil nos habituarmos a ler poesia no texto eletrônico, já que a relação com a poesia supõe uma proximidade física entre o texto impresso e o leitor. Dentro deste contexto, o autor considera que não há porque fazer um diagnóstico sombrio, ao contrário; o mundo dos textos eletrônicos pode ajudar a alfabetização e a difusão da leitura. É preciso então evitar tanto uma visão absolutamente otimista quanto uma postura melancólica em relação a estes novos meios. Nós leitores sabemos que nunca será a mesma coisa ler o texto de D. Quixote num CD-Rom e na sua primeira edição de 1605, já que manusear o livro é reconstruir a experiência dos leitores do passado. A forma do texto sempre participa da produção do seu sentido. Seria uma perda enorme pensar que, só porque os textos do passado são acessíveis através de uma tela, poderíamos nos afastar e até destruirmos esses suportes mais efêmeros. Diferente de um CD-Rom, um livro impresso que acaba de sair da editora dá um prazer particular ao leitor que o compra numa livraria: o ato de ir à livraria ao encontro de "seu outro" e o fato de poder manuseá-lo e senti-lo com as suas próprias mãos é um prazer que não se compara com a compra de um CD-Rom; o formato agradável deste objeto que pode nos acompanhar em qualquer lugar e até o próprio ato de entrar em uma livraria para escolher um livro é um ato prazeroso que é insubstituível.

Mas sabemos que, apesar de Flusser ter sentido um certo temor pelo desaparecimento do livro impresso, mesmo assim, ele lutou pela permanência da palavra escrita e impressa em papel, em razão de suas características únicas que a perfazem como a tecnologia perfeita, a única que tende a sobreviver amplamente em um planeta com carências de energia. Os livros também, segundo Flusser, ajudam o homem a romper com a solidão, pois se o homem deseja escapar da solidão, deve escolher um livro qualquer, tirá-lo da estante e abri-lo. O ato humano, o que faz, o que diz e como diz, a língua que utiliza, o gestual, a roupa que usa, o momento em que vive, tudo indica completa diversificação e incapacidade de anular a invulgar característica humana da alteridade quase absoluta, por mais imperceptível que o seja à primeira vista. Todo profeta da dissolução vê o futuro negar-lhe os vaticínios da mesma maneira que todo futuro que se apresenta mais próximo chega até nós com seu indisfarçável gosto do passado: revoluções prometidas, sobrevida das palavras e dos homens, ao menos para dizê-las...


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