Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Ficções Flusserianas:
sobre Ficções filosóficas,
de Vilém Flusser


SOBRE "Fulano de Tal"

RACHEL FÁTIMA DOS S. NUNES

Em seu ensaio intitulado "Fulano de Tal", Flusser fará um estudo sobre como o anonimato e a fama foram assumindo papéis diferentes no decorrer dos períodos históricos. O filósofo questionará qual o significado da fama, que faz com que o homem se torne conhecido na esfera pública e qual o significado do anonimato, que faz com que o homem seja ignorado nesta mesma esfera, isto é, qual será o lema de quem perdeu o anonimato e qual será o lema de quem está no anonimato. Flusser ainda analisará como os homens comuns conseguiram se transformar em homens célebres, saindo do anonimato, adquirindo um nome, fama e respeitabilidade social. Além de questionar o fato de como uma pessoa pode se tornar famosa, isto é, o que de fato faz uma pessoa tornar-se uma celebridade, admirada e idolatrada por todos, o filósofo irá também repensar a problemática da fama na atual sociedade de consumo, onde todos querem fazer do nome "Fulano de tal" um nome famoso, onde homens que, por desejarem conquistar o sucesso a qualquer preço, manipulam a massa, aniquilando com o juízo ético. Neste trabalho, procurarei me deter na concepção de fama teorizada por Flusser e que foi assimilada pela indústria cultural. Analisarei qual será a repercussão da fama das estrelas, dos ídolos e dos animadores culturais que conseguiram sair do anonimato e ,atualmente, fazem parte do imaginário coletivo das massas.

Na abordagem do filósofo, existiram várias épocas que assumiram posições mais decididas a respeito da problematicidade da fama, no universo onde viviam os homens conhecidos por seus nomes célebres. Em épocas arcaicas, ter nome conhecido significava estar exposto a poderes nefastos; o nome revelado conferia ao inimigo armas destrutivas, já que a força vital ( mana ) estava escondida no nome. Portanto, para evitar que algo de trágico pudesse acontecer, era mais seguro que os nomes fossem guardados em segredo. Na Antiguidade, ter nome significava quase ser divinizado; na Idade Média, ter nome significava cair na tentação do pecado mortal do orgulho. E ainda, na Idade Moderna, fazer nome significava permanecer na memória coletiva e ter nome significava alcançar uma certa imortalidade, como por exemplo, é o caso de alguns atores hollywoodianos ( James Dean, Marylin Monroe ) ou figuras políticas proeminentes ( Che Guevara, Hitler ), pessoas que conquistaram a fama muitas vezes mais pelo que significaram do que pelo que de fato fizeram. Após traçar um panorama histórico sobre as repercussões da fama no decorrer das épocas históricas, Flusser analisará que ,atualmente, nas sociedades modernas, ter nome é um problema. E algumas razões da problematicidade da fama são estas: é muito fácil penetrar na memória coletiva, dada a comunicação de massa. Mas também é igualmente fácil ser esquecido. O filósofo ainda comentará que a memória das massas é muito fugaz, assim como também é fugaz o tempo de sucesso de um astro de cinema, de um músico ou de um animador cultural.

No Brasil dos anos 90, fazer do nome "Fulano de Tal" um nome famoso foi habilidade dos bregas e bárbaros que representam os novos-ricos da cultura. Os dois mais recentes homens famosos que são filhos da cultura de massa emergente são: o apresentador Carlos Massa, " O Ratinho", e a cantora Carla Perez. Estes dois novos ídolos nacionais fazem questão de ostentar riquezas, exibem o carrão importado, reforçam a todo momento a idéia de que felicidade é sinônimo de ascensão material e realização pessoal. Ambos saíram do anonimato, adquirindo fama e prestígio perante a massa, conseguindo conquistar a admiração do público, o que pode ser avaliado em níveis de audiência e vendagens de discos, revistas e jornais. De desconhecidos da massa anônima passaram a ser conhecidos por todos que os consomem, por todos que acompanham a explosão musical da "Carla do Than"e o impacto milionário do programa do "Carlos do cassete". Ambos entraram nas casas dos consumidores principalmente pelos canais de televisão, veiculadores de programas que manipulam sentimentos e a imediatez do público por soluções pautadas em preconceitos - de classe, de beleza, de credo político ou religioso, de apreensão estética... - e estações de rádio, monitoradas pelos interesses comerciais de gravadoras que monopolizam o mercado e diluem a música popular em fórmulas cujas variabilidades começam e terminam por lamentos amorosos ou erotizações juvenis.Um mercado de milhões de potenciais consumidores não pode, evidentemente, ser desprezado pela indústria cultural, mercado este que vem abandonando, paulatinamente, padrões morais e éticos baseados no contrato social entre cidadãos e o Estado para balizar-se na mínima moral entre produtores e consumidores. Mas fica a pergunta: o que na verdade as massas querem ver e ouvir? A resposta mais fácil, certamente não a única, já foi dada sob a forma destas produções musicais e televisivas de apelo popularesco. Para os críticos da Folha de São Paulo, do pagode e da "bunda music" ao roedor de audiência Carlos Massa, toda uma área de entretenimento passou a ser comandada por esse público recém-chegado ao baile da diversão grotesca-eletrônica; entretanto, este caminho desvia do cerne da questão, que é a completa diluição de conceitos associados à ótica da cidadania (participação política, responsabilidade civil, integração social) por força não dos que exigem determinado alimento para seus paladares fortes, mas em razão da pressão do mercado que desmonta as estruturas de regulação social sob o consorciado de cidadãos denominado Estado para impor o laissez-faire, onde o poder de compra é a medida de todas as coisas e do bem-estar individual, despido de qualquer civilidade. Assim, entendemos que a Folha de São Paulo, através de seus escribas, não objetivaram uma crítica das relações sociais sob o amoralismo das novas relações do capitalismo especulativo, fazendo com que o público fosse responsabilizado como causador da insurgência do mau-gosto, após a conquista dos direitos de consumidores através do sucesso do Plano Real... Nada a dizer sobre o deslizamento ético e moral do status quo vigente que privilegia, sobretudo, a construção do Eu como medida de todas as coisas.

No caderno da Folha dedicado exclusivamente a tais questões, os críticos elencados comentam que a fama do apresentador Ratinho penetrou na memória coletiva das massas, na medida em que monopoliza milhares ou milhões de telespectadores em seu show de variedades, onde se repetem o ancestral espetáculo do Círculo de Horrores ( a mulher mais gorda, o homem mais feio, a criança que nasceu desfigurada e sem cabeça, etc. ) e os conflitos entre casais que chegam às vias do fato em pleno auditório, o que aliás já foi denunciado como representação orquestrada pelos produtores do programa. Dizem eles que as massas parecem não querer enxergar a falsa realidade dos programas ditos populares, como o do Ratinho; e, neste sentido, elas também parecem não conseguir distinguir o que é verdade do que é não verdade no mundo do faz-de-conta da mídia. Os "animais do zoológico da mídia", como o Ratinho e agora o recente Leão, invadiram as casas dos telespectadores que compactuam com o espetáculo bizarro que é montado em seus programas. Alcançando a fama manipulando a realidade, montando situações fictícias que estão forjando os dados reais, o apresentador Ratinho goza o seu tempo de fama à custa das vítimas da manipulação da mídia, que aceitam forjar determinadas situações no programa em troca de dinheiro. Em meio a esta desmoralização ética, o apresentador assume a persona apropriada à sua intervenção: dando cassetadas na mesa, berrando acusações, emprestando sua lábia às virtudes dos produtos em promoção, armando palhaçadas junto aos calouros, encarando a câmera num repente, inventando entrevistas; todas estas encenações atraem cada vez mais os espectadores, que vibram quando o apresentador encarna o papel do delegado de plantão, peitudo e enxerido, pronto ao que for preciso para fazer o bem, fingindo garantir a moralidade e os direitos dos humilhados e ofendidos... Todo o problema desta abordagem é que nos parece que a " elite pensante ", representada pelos articulistas do jornal, nada mais faz que responsabilizar a população ( e principalmente o novo adquirente de tevês, rádios, gravadores e vídeos, ) pela pauperização dos valores estéticos e morais, pauperização esta que passa mais diretamente pela nova natureza das relações sociais sob o novo tipo de capitalismo que encerrou a idéia do Estado do Bem-Estar Social, dirigindo-se para um novo grau de relações onde ou se é consumidor ou não se é humano. Transferem, assim, a responsabilidade dos que de fato exercem posições de poder e produzem o que entendem como excressências, para os que apenas as consomem, como remédio, alívio e catarse das sujeições cotidianas. Não importa o crivo da verdade ou da ficção : para este público, não há este limite, esta fronteira. A "realidade" é um objeto acima de sua compreensão : para ele, tudo é real, na medida em que tudo pode não ser real, mas apenas uma versão controlada sob uma mecânica que às vezes pressente, mas não lhe é dado a conhecer.

Já Carla Perez adquiriu prestígio perante as massas graças às suas músicas apelativas sexualmente, que penetram também no gosto da população. Devido ao sucesso de sua imagem que mistura sensualidade e gosto duvidoso, a cantora consegue conquistar tanto a admiração dos adultos quanto a das crianças. Despertando comportamentos miméticos em massa, mulheres e crianças imitam amplamente seu jeito de vestir, suas mímicas e posturas. Para constatar este sucesso perante o público infantil, basta observar as meninas de 7 a 10 anos que atualmente aparecem com roupas e trejeitos de mulher sensual, para tentar imitar a nova estrela da mídia; identificam-se com uma imagem, como se ela de fato fosse realidade, isto é, como se ela de fato fosse mais que uma aparência. Esta imagem que aparece na tela, e que o público infantil tem como modelo, não é objeto de crítica entre as tensões do simulacro com o real, toma-se um pelo outro, consome-se pelas vias auditivas e visuais e o milagre está feito : retocam-se os padrões estéticos e morais, e consome-se. Amanhã será outro dia, outra musa, outro deus, outro ídolo e, se possível, outro Eu. A cultura mass-midiática trabalha neste campo ilimitado das projeções e identificações; o que transporta os fervorosos não é nem uma qualidade humana, nem uma mensagem de salvação, é o charme de uma imagem sublimada e estetizada, uma outra versão possível para o desejo que não se completa, que não se realiza, e que se troca cotidianamente, como se tocam as músicas no rádio e os passos de dança, dança do bumbum, do jacaré, da aranha, do padre e da freira, e do que mais vier...

A estrela, símbolo midiático, é o feérico da personalidade como a moda é o feérico do parecer; juntas não existem senão em razão da dupla lei de sedução e de personalização das aparências; a comunicação midiática ordena-se sob a lei da sedução e do divertimento, é reestruturada implacavelmente pelo processo de moda porque aí reina a lei das sondagens, a corrida às contagens de audiência. Num universo comunicacional pluralista submetido aos recursos publicitários, é a moda que organiza a produção e difusão dos programas, que regula a forma, a natureza, os horários das transmissões. Na medida que a mídia caminha segundo as sondagens, o processo de sedução reina soberano. A estrela que desejamos consumir e imitar é definida como a fábrica encantada de imagens de sedução. Produto moda, a estrela deve agradar; a beleza, ainda que não seja nem absolutamente necessária nem suficiente, é um dos seus atributos principais. Uma beleza que exige encenação, artifício, refabricação estética: os meios mais sofisticados, maquiagem, fotos e ângulos de visão estudados, trajes, cirurgia plástica, massagem, são utilizados para confeccionar a imagem incomparável, a sedução enfeitiçadora das estrelas que a mídia a todo instante manipula, tentando vender ao consumidor que a estrela dos anos 90 irá satisfazê-lo melhor, por ser nova e inigualável no mercado, do que a estrela que já brilhou nos anos 80. Podemos dar como exemplo da efemeridade da fama da cantora Gretchen, grande sucesso dos fins dos anos 70, símbolo sexual da época, substituída pela Carla Perez dos fins dos anos 90. Encorajando as atitudes de consumo, embotando as faculdades de iniciativa e de criação, desestimulando o senso crítico, a cultura de massa não faz senão ampliar a esfera da despossessão subjetiva, agindo como instrumento de integração às normas monetaristas do chamado neoliberalismo.

O segredo da notoriedade e celebridade tem relação direta com a imagem que a mídia coloca para estas duas estrelas da cultura de massa: Carla Perez mercantiliza a imagem da mulher loura-sexy-burra, Ratinho outra que se apóia na junção de personalidades à primeira vista contraditórias, mescla de tira, boxeador e bufão. Os aspectos desta comicidade popular derivam com freqüência de expedientes que facilitam sua identificação com o público : faz comentários impertinentes na hora exata, revida com idéias de bom senso, insolências, expressões engraçadas e divertidas, pegando o entrevistado no contrapé. Esses apartes constituem os momentos mais espontâneos e criativos de seu desempenho, desempenho este que garantiu ao apresentador alcançar o topo da audiência. No entanto, podemos fazer um exame dos indicadores financeiros desse negócio "missionário" leigo, liderado por um esperto corretor do sofrimento alheio. A cada programa, o espectador é convidado a se pronunciar diante de uma questão - você é favorável ou não a capar estupradores?, o desemprego deve ser atribuído aos empresários ou ao governo? etc., devendo comunicar sua resposta por meio de uma ligação paga, que lhe dá o direito de participar do sorteio diário de carros. A legenda com o preço da ligação exibe o nome de uma instituição de caridade, insinuando ao doador potencial uma destinação benevolente ao seu dinheiro. Como de hábito nesses acertos, a entidade costuma receber, no máximo, algo entre 2% e 3% do que for arrecadado. É por estas e outras questões que atualmente se questiona o papel da televisão na vida das pessoas, pois a falta de limites éticos dos programas atingiu o seu ponto máximo: a contratação de pessoas que vivem situações mentirosas no palco e o desvio do dinheiro público de centenas de espectadores que são enganados pela mídia. Contribui-se assim para a destruição da idéia de cidadania, substituindo-se o Estado pela (pseudo)caridade pública, tocando-se na consciência viva de cada um na qual a solidariedade se dá apenas de vizinho para vizinho, relações imediatas, visíveis e palpáveis ou, às vezes nem isso, servindo aqui o dito de Otto Lara Resende : mineiro só é solidário no câncer...

Como diz Flusser, é muito fácil penetrar na memória coletiva ( fórmula discutível, diríamos melhor : nos padrões aceitos pela massa, integrados à memória de cada um com a mesma fugacidade de todos os valores forçosamente coletivizados ), basta ver programas do velho Chacrinha e agora do tipo Ratinho Livre. A atual onda de programas "populares" na TV veicula o mesmo humor escrachado, o mesmo voluntarismo, destilando os velhos preconceitos contra o marginal, o preto, o pobre, a mulher que trai o marido, o muito feio, o aleijado, o judeu e o turco, às vezes de forma mais legítima porque desacralizadora, mas a maior parte do tempo de forma preconceituosa e, não raro, cruel. Integram ainda figuras bizarras que fazem o papel de assistentes de palco, alvo de piadas e gozações, bem como participantes episódicos colhidos em qualquer esquina e dispostos, como se diz hoje, "a pagar mico" para faturar algum dinheiro extra, mesmo que estes cinco minutos possam representar a desmoralização ética do sujeito. Quando estes personagens entram em cena, quase sempre protagonizam cenas de um grotesco que, herdeiro da carnavalização dos papéis sociais, termina por reforçar toda sorte de preconceitos contra minorias ou mesmo maiorias incômodas : nordestinos em São Paulo, pobres na praia de Ipanema, este tipo de coisa. Valem como exemplo dois coadjuvantes que agem como extensões do ego dramático do apresentador Ratinho: um cinegrafista de boné e filmadora, improvisando cenas de pastelão, e um homem seríssimo, de terno e gravata, semblante grave e fala pausada, com molejo de advogado manhoso que reforça a credibilidade da produção com respeito aos casos polêmicos.

Em pesquisa citada pela Folha, o perfil social do público que eleva a audiência do programa "Ratinho Livre"parece indicar que este público possui baixo capital escolar e cultural, segmentos destituídos de informação, gente sofrida, "iludida"e "ressentida" - isso nos dizeres de nosso "ilustrado" periódico. Mas, por outro lado, a claque de estudantes jovens, atuantes no auditório,parece ter sido contratada e orientada pelos produtores, sendo difícil pinçar neste coletivo exemplos ilustrativos da audiência caseira. Embora se trate aparentemente de um programa ao vivo, o comportamento previsível do auditório converte essa "parceria" em parte do cenário ao invés de caixa de ressonância. Esse defeito de carpintaria dramática realça o extremado tom de falsete comunicativo desse Ratinho acorrentado pela compaixão de fachada que ostenta o seu nome diante das misérias da sociedade brasileira e da exploração da dor humana. No mais, não diríamos que o dito programa é "popular", mas sim que utiliza-se de alguns elementos caros à esta cultura (exteriorização, carnavalização, verbalização extrema e diferenciada) no bojo de um processo em última instância conservador : propõe não a solidariedade como valor essencialmente humano, mas uma solidariedade análoga à piedade e à caridade pública, uma aproximação das classes dominantes sobre as dominadas sob o signo do assistencialismo, mantendo-se a ordem vigente e, se possível, questionando-se sempre a possibilidade de alterações nesta ordem, o que evidencia-se quando colocam-se esse gênero de "apresentadores" ou "artistas populares" diante do público em épocas de eleições, quando então referendam candidatos de evidente perfil conservador, quando não próximos à truculência, cujo modelo é o slogan do candidato Sivuca : Bandido Bom é Bandido Morto.

A cultura de massa, sob controle de órgãos específicos, quase monopolizadores de valores e opiniões públicas, está imersa no mito do sucesso e da celebridade em torno de figuras de charme com sucesso prodigioso, que impulsionam adorações e paixonites extremas: as estrelas e os ídolos. O sucesso abre caminho para a atomização, pede a utilização do nome em todas as direções, relacionadas a todo tipo de produto ou idéia conservadora, super-expondo o personagem até provocar um desgaste completo e redirecionando o público a um novo ídolo, portador de qualidades e valores praticamente idênticos, como se trocasse o fiel o Santo Antônio dos casamentos pela Santa Edwiges dos endividados, permanecendo no entanto na esfera do religioso. Mas a efemeridade da paixão midiática obriga a assimilá-la não a uma manifestação do religioso, mas a uma paixão da moda, uma mania temporária. Neste sentido, podemos dizer que a idolatria das estrelas não é de mesma essência que o religioso, não é senão uma das formas extremas da paixonite moderna.

Não existe bem durável no reino da cultura de massas : o ídolo de hoje é um produto na prateleira cujo destino é ser consumido, é saciar uma demanda imediata, para depois ser descartado, como uma lata de ervilhas vazia. Na literatura, há divergências : Petrarca sustentava que a glória só começava depois da morte; esta preocupação pela posteridade inquietou também os escritores Mallarmé, Valéry e Proust, que desprezavam a atualidade e achavam natural permanecer desconhecidos até uma idade avançada. Às poucas exceções já citadas, notadamente símbolos de resistência a certos valores, compreendidos ou não como progressistas, a cultura industrial instala-se em pé de igualdade com o perecível; esgota-se na busca obstinada do sucesso imediato, tendo por critério último a curva de vendas e a massa da audiência. Isso não impede a realização de obras "imortais", mas a tendência global é outra, caminha para a obsolescência integrada, para a vertigem do presente sem olhar para o amanhã. Enfim, porque é uma cultura sem rastro, sem futuro, sem prolongamento subjetivo importante, é feita para existir no presente vivo. Como os sonhos e a tirada espirituosa, a cultura de massa, no essencial, repercute aqui e agora; sua temporalidade dominante é aquela mesma que governa a moda.

Flusser estava certo ao comentar que, assim como é muito fácil penetrar na memória das massas é também muito fácil ser esquecido por elas; já faz parte do passado a moda dos jovens que tomaram como modelo o look Michel Jackson. Foco de moda, efêmero como é toda a celebridade, a estrela é ainda mais, nela mesma, figura de moda enquanto ser-para-a-sedução, quintessência moderna da sedução, sedução esta que um dia se perderá na memória das massas fugazes. Podemos finalizar dizendo que toda a cultura de massa trabalhou no mesmo sentido que as estrelas: um extraordinário meio de desprender os seres de seu enraizamento cultural e familiar, de promover um Ego que dispõe mais de si mesmo. Dentro deste contexto, se o futuro sombrio desta cultura de massa é fazer de todo "Fulano de Tal" um nome famoso, um nome que possa adquirir fama supostamente por atender aos gostos populares, se todos serão famosos no futuro próximo por entrarem no jogo do faz-de-conta da mídia, que não distingue o real do virtual, caminharemos então, na visão do filósofo, não para uma democracia, mas para o fascismo, onde todos estarão entregues à ostentação de um individualismo narcisista e destruidor, onde todos viverão em cenários de mundos fictícios, como no mundo do "Show de Truman", filme recente do diretor australiano Peter Weir. Este filme apresenta uma fábula inteligente sobre a vida de um homem que pensa que vive num mundo real, quando na verdade tudo faz parte de um programa diário na TV; todos os passos de Truman são filmados por câmeras escondidas e exibidos na TV desde que ele nasceu.Truman nasceu e viveu em um estúdio pensando que estava vivendo uma vida real, mas na realidade tudo não passava de ficção; toda a sua rotina diária e os seus anos de vida foram acompanhados e filmados pelo estúdio que comanda o "Show de Truman".

Assim, tudo é cenário no "Show de Truman": a cidade, as casas, os cidadãos da cidade, que são atores, os pais de Truman, os amigos de Truman, a mulher de Truman; neste mundo perfeito e artificial só o próprio Truman não sabe que vive uma ficção - o american way of life elevado ao state of art. Sua vida é acompanhada por milhões de telespectadores que assistem estupefatos diariamente à simulação de uma vida ao vivo. Espetáculo para as massas, o "Show de Truman", no Brasil sub-intitulado como o "Show da vida", fórmula associativa a um conhecido programa de televisão brasileira que também tensiona o arco da realidade para fabricar seus simulacros, apresenta ao espectador a possibilidade de acompanhar, sem interrupção, a vida de Truman, vida esta que é controlada durante vinte quatro horas pela câmera vigilante dos produtores da mídia; o poder da mídia, no filme, é tamanho, que ela exerce um controle absoluto sobre toda a vida de Truman, que pouco a pouco vê cerceada a sua liberdade. Neste mundo colorido e artificial , onde o azul do céu é cenário para personagens como o cachorro Pluto, e onde pessoas, durante uma simples conversa, fazem merchandinsing de produtos alimentícios, utilidades domésticas, planos de saúde e outros, Truman ( ou True Man, um Homem de Verdade ) não percebe que seu arbítrio não é livre e, quando o faz, a evasão é monitorada por Christof que, na cena final, com sua voz como se brotasse do sol entre as nuvens, numa clara associação com as aparições kitsch de Deus nas sagas religiosas hollywoodianas ( seu próprio nome induz a isso, é o Cristo - em off ), declama um discurso típico da mídia contemporânea, declarando que o seu real é mais perfeito que o real desconhecido do mundo fora do estúdio : existem as mesmas dores, os mesmos desapontamentos, mas tudo é pior porque fora de controle, não havendo um ideal pleno e monitorador dos acasos. Entretanto, Truman prefere o mundo com suas relações imprevisíveis e, num ato de representação, sorri, curva-se ao grande espectador Deus, e abandona o paraíso artificial, o que nos parece uma associação ao Gênesis, onde o Éden é preterido face a curiosidade de Adão : a felicidade gerida por uma força superior é rompida por uma esfera desejante incontornável na figura humana que, mesmo lamentando a queda, parte para sua própria aventura. A aposta é, enfim, no fantasma da liberdade, na quimera do desejo e, se pode diagnosticar o poder da mídia na sociedade contemporânea através de uma fábula exemplar, pois o filme aponta para a possibilidade da interferência, da interseção do singular no plural avesso ao globalismo de ordens dominantes o que, afinal, é incontestável : em todas as sociedades de corte totalitário, subsistiram sempre idéias e comportamentos de resistência, e todas elas acabaram por ruir. A Nova Ordem Mundial, ciente disso, caminha lado a lado à ilusão de liberdade, para destruí-la como conceito, sobrepondo o dístico : liberdade é consumo. Neste sentido caminha a indústria cultural, avessa à cidadania e às relações sociais sem pressões midiáticas. No sentido inverso, a arte disposta a não esconder sob simulacros a riqueza só inerente a um mundo imperfeito.


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