Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Ficções Flusserianas:
sobre Ficções filosóficas,
de Vilém Flusser


Sobre "Comunicação I"

Paulo José Figueredo Pimenta

 Comunicação pressupõe codificação e decodificação, num ato concreto de fala envolvendo dois partícipes: o emissor e o receptor, que alternam seu papel, para fazer circular uma mensagem, codificada em língua na qual tenham competência os falantes. Pensar os elementos de comunicação, de forma tão estanque, suprime, pode-se dizer, a complexidade que o ato de fala traz em sua gênese.

Se nos detivermos na questão da arbitrariedade do signo ou se entendermos mais útil, a convencionalidade, perceberemos o caráter não motivado que determina a relação entre signos e coisas. Descartam-se, pois, com efeito, quaisquer místicas que entendam haver algo além das palavras ou que a elas subjaz. A linguagem, marca de nossa diferença face aos animais, de certa maneira nos coloca de chofre alguns problemas – pode-se dizer estruturais. O que avulta com um tema assaz relevante é o recorte / o livre arbítrio no que tange ao processo ativo da enunciação. Se o registro faculta o falante atualizar as variantes lingüísticas de acordo com o contexto e da sua opção de escolha, já não se pode considerar o mesmo, com relação à morfossintaxe de dada língua.

Se considerarmos, in casu, a língua portuguesa, constataremos que as palavras obedecem a uma disposição (ordem), a uma sintagmática (regência, sentido lato) e a um ajuste entre as palavras (concordância), sem falar nas questões de gênero e número. Se pronuncio qualquer sentença, os substantivos correspondentes se enquadrarão necessariamente em um dos blocos, masculino ou feminino e singular ou plural. Da mesma forma, a ordem e a regência observadas, entendida esta última como encarnação do processo de estruturação sintática de subordinação, matriz mais comum na expressão das sentenças me português.

Pode-se verificar que a liberdade do utente começa a circunscrever-se em determinada área, em que se percebe que, ao falar, estamos nos submetendo a várias regras em âmbitos diversos: a fonologia, a morfossintaxe (regência e colocação), a nível do esquema.

Confrontando as assertivas a seguir: a) A gente vamo na praia dia sim dia não; b) Nós vamos à praia regularmente; c) * Vamo dia dia sim não gente a na praia. Se confrontarmos as sentenças, seria a "c" a única agramatical. As assertivas "a" e "b" trazem à baila dados sobre a norma e, por extensão, há de se pensar em norma culta da língua. Como fato necessariamente decorrente, há de se pressupor o certo e o errado, limitando sobremaneira a liberdade de expressão, fato este gerador de outras questões como o valor de troca dos bens imateriais.

Quando o sujeito fala, ri, senta, se veste, anda e ama, ele se insere em níveis previamente fixados e que o cataloga e o enforma, dentro das expectativas sociais. Antes de entrarmos pela porta da frente no texto de Flusser, seria pertinente aventar ainda, no campo da discussão, a impossibilidade de o sujeito expressar-se, mesmo com as contingências das línguas particulares, as opiniões e expressões, já que elementos culturais serão então elencados. A fala do eu se submete antes de sua existência, enquanto forma, tanto à presença da pessoa com quem se fala, quanto à cultura em que o interlocutor se encontra situado. Falar de poligamia tanto de um homem como a de uma mulher com um casal ortodoxo, protestante, pode gerar atritos e discussões; falar mal do Flamengo ou do Vasco na torcida em jogo de decisão pode gerar até mortes; se um homem homofóbico é abordado por outro num assédio, o ato pode levar à violência; o aluno não pronuncia um foda-se ao professor, em alguns casos, quando há discussão, impertinência ou violência simbólica, não por de repente não desejá-lo, mas pelas regras tanto lingüísticas , quanto hierárquicas, sendo que estas mantêm uma relação quase direta com o poder. Lendo neste igualmente o saber.

Como último elemento, poderia pensar no papel do psicológico nos dados lingüísticos transmitidos; e nesse ponto, como é rico verificar a total inconsciência das pessoas diante do que pronunciam, da relação de poder que as mantêm sempre marginalizadas e os estereótipos de toda a sorte que sustentam em seu discurso. Para não cansar com digressão, seguem uns poucos exemplos de fato tão comuns: homem não chora; a coisa ‘tá preta; negro de alma branca; negro quando não caga na entrada, caga na saída; mulher é sensível; homem educado e sensível é boiola; etc. Frases pronunciadas como piada e ironia, que mais mantêm do que abalam, em plena continuidade da naturalidade de que se serve o estereótipo, fonte, in casu de preconceitos, que entram via inconsciente e dão o norte do recorte do real e da enunciação.

O texto de Flusser nos coloca alguns pontos que guardam conexão com o que fora explicitado nas linhas precedentes, por colocar em xeque o ato de comunicar-se. Parece que a estória que nos é lançada apontaria para o caráter emblemático de sua mensagem: a fala do eu se submete quase por completo à presença do tu, essa segunda pessoa é esmiuçada, analisada e compartimentalizada, é vicariamente vivida como outro, até que a fala em 1.ª pessoa consegue uma sentença que se encaixe naquela situação concreta de fala, a partir da análise psicologizante, na cristalização dos discursos, espaços estes que não propiciam o pensar, o descontínuo e a especulação.

Poder-se-ia ler o texto como a comunicação sendo mais a expressão da morte, posto que naturalizado tanto a nível mais primitivo (do companheiro de cela) quanto do intelectual que racionaliza dentro de padrões fixados previamente.

Não deixa de ser extremamente interessante a ironia final do ‘’é": uma concordância; uma palavra que diz tudo e não diz nada. Esse "é" poder-se-ia prender a tão somente uma concordância aleatória. O tom monossilábico fecha o circuito comunicativo, que se funda basicamente no diálogo que se trava entre os falantes; e o entendimento de algo a nível dos discursos se assenta na argumentação e troca de conteúdos e de convencimento, diante da abordagem e posicionamento face a determinado fato concreto.

Por outro lado, poderíamos pensar, com efeito, que, mesmo dentro de regras, há possibilidade de se estabelecer um contato mais insólito, mais especulativo; pode-se pensar, nesse sentido, na ética do falante. Sempre dizer algo para que esse algo seja compartilhado, curvar ao poder da autoridade: na Academia, por exemplo, pode-se flagrar com freqüência a aclamação ou rejeição de um mesmo texto produzido ,em razão de ele contemplar determinadas afiliações teóricas. Se abrangermos o foco de observação, tornar-se-á extremamente interessante a reflexão sobre a liberdade de expressão. A liberdade limitada da comunicação, uma vez descortinada, implica, em certa medida, pensar a relação de poder e autoridade na qual investe determinada classe hegemônica política e econômica, e, por extensão, cultural, que valoriza os usos lingüísticos pautados pela norma culta da língua. Em geral, muitos dos usos lingüísticos considerados "corretos" só servem para eliminar candidatos desatentos em concurso ou, quando tais critérios não são suficientemente discerníveis, para que realmente o professor ou aquele que diz a priori conhecer o certo e o errado se beneficiem de seu conhecimento, muitas vezes inútil.

Para fechar: discutir se o correto é entre mim e você ou entre eu e você, e questões correlatas, faz deslizar para o plano muito mais secundário, por exemplo, outras questões como os preconceitos de toda a ordem racial, sexual, religioso e intelectual e, como não podia faltar, lingüístico. Em última instância, tais preconceitos trabalham com o apagamento da arbitrariedade que os sustenta, que os naturaliza, que os torna moeda corrente, e faz com que o próprio negro exerça seu preconceito contra sua raça; que os protestantes exerçam preconceitos contra os espíritas; e que os homofóbicos possam matar os gays, por entenderem que estariam fazendo um favor à sociedade.

A questão ventilada no parágrafo anterior traz necessariamente a questão ligada à verdade como dada anterior ao discurso, e não fundada pelo e no discurso.

Em linhas gerais, parece-me que o texto de Flusser se nos mostra uma crítica ao que comumente chamamos comunicação, que não estaria ligada nem a diálogo, e por extensão, à troca, e, sim, a mecanismos enraizados pobremente, naturalizados o que reduziria a comunicação a um plano quase infantil, senão inteiramente paranóico.


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