Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Ficções Flusserianas:
sobre Ficções filosóficas,
de Vilém Flusser


Sobre "Homens Famosos I - Nero"
A Glória da Infâmia

Luísa Chaves de Melo

 O texto "Homens Famosos I", de Vilém Flusser, publicado no livro Ficções Filosóficas [Edusp, 1998], usa o exemplo de Nero para traçar reflexões sobre a gloria e a infâmia que, segundo o autor, constituem as duas formas para se atingir a fama, antes do advento dos meios de comunicação de massa, e acaba por confrontar a antigüidade clássica com os dias atuais.

Com uma escrita precisa e irônica, Flusser nos leva a questionar o fenômeno da fama na atualidade (Andy Warhol já preconizava que todos teriam direito a seus quinze minutos – e não mais), pois haveria um esvaziamento das formas anteriores, principalmente no que diz respeito à glória.

Se Nero tivesse vivido nos dias de hoje, não lhe seria destinada a glória, apenas a infâmia. Uma vez que, na atualidade, construir obras grandiosas é corriqueiro, matar a mãe é sinal de distúrbio psicológico, aumentar impérios e conceder liberdade é infame e perseguir judeus pode ser infame ou glorioso, dependendo de quem julga.

A única glória que permanece inabalável é o fato de ele tocar lira "enquanto Roma ardia", um happening de primeira, para Flusser; mais espetacular do que qualquer vanguarda moderna, "modelo esplendoroso de arte pura, de arte efêmera, de arte conceitual, de antiarte, de improvisação, de living theatre, de exposição autêntica [..]" [p. 154].

O modelo de arte pura que Flusser aponta é o de uma arte transitória e fugaz, e não permanente como estamos habituados a pensar, o que, por si só, já constitui um paradoxo: se é efêmero, como o happening de Nero pode, não apenas ser lembrado quase dois mil anos depois, como ser o principal motivo da permanência da glória cuja fama é a conseqüência imediata. Ainda mais quando nos deparamos com o desdobramento, por ele apresentado, da questão: a glória independe dos fatos, ela baseia-se mais em lendas do que na realidade. Nero não teria morrido no incêndio de Roma, não há registro de tê-lo provocado e, talvez, sequer tenha tocado lira durante o acontecimento histórico.

Flusser encerra seu artigo nos convidando para transportar a cena gloriosa da performance de Nero para o incêndio do edifício Andraus e, avaliando as possibilidades do imperador romano, julgar a atualidade, nunca Nero.

Aceitemos o convite.

Retomando o comentário exposto no início do texto, percebemos que a situação, de 1972, quando o artigo foi publicado, para cá, só esvaziou mais o terreno da glória e da infâmia. Ele pondera que com os meios de comunicação de massa, haveria outras maneiras mais eficientes de se obter fama. Entretanto, uma observação mais cuidadosa da sociedade contemporânea, nos revela que, em tempos da cultura de massa – quando mesmo os noticiários transmitidos e impressos nos mais variados veículos de comunicação se tornam produtos da indústria cultural –, glória e infâmia parecem estar restritas à ficção ou à ficcionalização da realidade cotidiana.

No que diz respeito à glória, restam apenas os atos heróicos de personagens, ainda românticos (e, por isso mesmo ficctícios em um terreno onde só há espaço para o pragmatismo), da literatura escrita, cinematográfica e televisiva. Como Nero, os músicos contratados para a viagem inaugural de "Titanic", de James Cameron, mantiveram-se firmes, até o fim, sem desafinar a sinfonia.

No já esquecido Titanic brasileiro, o Bateau Mouche, não houve menção a músicos ou atos gloriosos; nem, tampouco, espaço para o registro de "heróis" anônimos que esqueceram a comemoração do ano novo para zarparem com seus iates ao auxílio de quem estava nas águas.

Criamos personagens gloriosos na ficção, como se esse fosse o único espaço que sobrasse para eles. Não se espera que ninguém mais tenha glória. E quando ocorre de alguém a ter, desconfiamos dos propósitos reais e calamos o gesto. Sempre haverá uma lista dos bicheiros para transformar a glória de um Betinho, deflagrador de uma ação de cidadania contra a miséria e pela vida, em pó.

Como Flusser já nos sinalizava, glória e infâmia são reversíveis – e, talvez, nunca tenham sido tanto como na época da mediatização da realidade. Da glória de Betinho, surge sua infâmia. Da infâmia dos bicheiros, sua glória: apontar a podridão do novo santo brasileiro e mostrar que "de perto ninguém é (a)normal".

É esse o maior esforço dos meios de comunicação de massa: escavar a vida íntima de personalidades "famosas" para mostrar a vileza que qualquer um possui entre as quatro paredes de seu domínio privado. Por isso, a infâmia, muitas vezes plantada nos jornais pela própria pessoa em questão, ainda garante a evidência do personagem, durante alguns dias, nos veículos de comunicação. Contudo, não é mais responsável pela gênese da fama, apenas cumpre a tarefa de manter foco dirigido para quem já tinha sido eleito pelos mesmos veículos.

Para fechar os 180º abertos pela reflexão flusseriana, e acomodar o pensamento, recorro às contribuições, sempre pertinentes, de Hannah Arendt, com relação aos domínios público e privado. A autora de A condição humana [Forense Universitária, 1989] após fazer um levantamento da evolução das duas esferas, defende que, na atualidade, as duas estariam diluídas em uma nova: a social.

O domínio público seria o da política, o da ação estabelecida entre os homens que não sofre mediação de matéria, seria a condição humana da pluralidade. Em um mundo no qual a esfera pública é substituída pela social, não resta espaço para a glória – celebração de ações públicas.

Além disso, vivemos uma época hedonista na qual a afeição à vida (pelo prazer por ela proporcionado) é valor máximo. Ora, Arendt mostra que a liberdade não pode existir onde há apego à existência terrena. Percebe-se, então, a impossibilidade da glória em tempos atuais, nos quais não nos resta sequer a possibilidade de escolha por se deixar morrer – como teria feito Nero ou Sócrates –, responsável pelo surgimento do mito.

A infâmia, que encontra espaço no domínio social – pois trata-se, justamente, de tornar visível a todos características pessoais e atos realizados na privacidade do domínio privado –, ainda encontra ressonância em tempos da sociedade de massas. Entretanto, acredito que ela adquira, cada vez mais, uma embalagem fake cuja função é despertar a indignação momentânea dos indivíduos até o surgimento de um fato mais interessante e, talvez, mais infame. Essa é a única glória que nos resta: conseguir perpetuar a fama de infame.


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