Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Ficções Flusserianas:
sobre Ficções filosóficas,
de Vilém Flusser


sobre "Deixe isto pra lá"

Joice do Carmo Baroni

Ao ler o artigo escrito por Flusser há algumas décadas, ficamos fascinados e ao mesmo tempo intrigados. Já explicaremos. O fascínio é decorrente da capacidade de observação e da sutil mas profunda- análise que Flusser realiza a partir de uma canção popular daquele tempo. Análise essa que não se limita apenas à letra. Ele vai além. Busca o gesto que acompanha o objeto de seu estudo. O estudo por sua vez também é intrigante pois ainda conserva características que poderiam ser muito bem aplicadas a certas canções que nos bombardeiam atualmente. Sua atualidade corrobora com a visão que passamos a ter de Flusser: um homem que possuía uma capacidade de percepção bastante aguçada. Todavia, ficamos tentados a imaginar qual seria a sua reação diante de canções que demonstrariam ser a canção, apontada por Flusser como diabólica , uma canção até ingênua. Que ironia, os gestos apontados por Flusser como reveladores de uma libido reprimida agora estariam metamorfoseados, apontando para uma explícita referência ao próprio ato sexual.

É comum andarmos pela rua e vermos crianças que ainda mal balbuciam dançarem com precisão a coreografia imposta a tais canções diante do olhar radiante dos pais que acham tudo "uma gracinha".

Só mesmo um ato esvaziado de seu sentido original poderia levar a demonstrações desse tipo. Chega a ser até irônico: a mãe que acha um absurdo cenas "mais fortes" em filmes e novelas, incentiva a filha a rebolar e a dançar ao som de canções do " É o tchan " em plena rua cercada de curiosos, reforçando ainda mais um gesto que poderia ser considerado obsceno se já não estivesse esvaziado de sentido.

Recentemente, porém, outro tipo de música parece ter ganho um lugar na mídia. Bandas católicas e protestantes e padres cantores parecem estar dividindo espaço com canções que nos aconselham a ir até a "boquinha da garrafa". Tudo parece muito estranho, de difícil compreensão. Estaria havendo uma busca de sentido para certos gestos? Haveria uma sede por certos valores já então escassos? Ou tudo não passa de puro "modismo"? Perguntas tão difíceis de serem respondidas quanto a própria constatação do fato e que só o tempo se encarregará de elucidar.

Mas voltemos ao objeto de nossa pequena análise: o texto de Vilém Flusser.

Bem, em algum momento de nossa vida já nos surpreendemos cantarolando uma canção que, em si, não continha nenhuma mensagem ou sequer um questionamento. É provável que, diante do fato, nos sintamos envergonhados( afinal somos professores e/ou alunos de mestrado ou doutorado). Tentamos, então, justificar nossa atitude alegando que agimos de forma impulsiva, em conseqüência da repetição incessante da canção no rádio ou mesmo pelas notas contagiantes que a constituíam. Não obstante, tal justificativa quase sempre não nos parece a mais satisfatória.

No ensaio intitulado Deixe isto pra lá , Vilém Flusser abala ainda mais uma vez nossas convicções, apontando para o caráter "perverso" ou, seguindo o pensamento do autor, "diabólico" de uma canção que há cerca de algumas décadas fazia bastante sucesso .

O significado da canção, de acordo com Flusser, estaria em um nível mais profundo- além da simples constatação de que pouco ou nada contribuía para aquela realidade.

Para Flusser, é justamente por aparentar não dizer nada que a canção esconde uma série de questões que escapam ao senso comum.

No início do ensaio, Flusser chama a nossa atenção para a importância das chamadas "canções populares" e o quanto elas nos revelariam formas de pensar de um povo. Correspondem, de certa forma, aos anseios de uma consciência coletiva que se manifesta através da repetição monótona de ritmos e gestos. Daí o caráter demoníaco mencionado por Flusser.

Ele acentua ainda a importância dessas antigas canções como " cristalizações perfeitas" dessa consciência popular. Infelizmente, adverte Flusser que há muito as canções perderam essa capacidade de cristalização, em decorrência da Revolução Industrial:

A "canção popular" que está sendo cantada atualmente tem existência efêmera, aparece de forma epidérmica, em milhares de discos e jorra de dezenas de milhares de alto-falantes para encher o ar e derramar-se no oceano do esquecimento. Tem marca indelével do comercialismo. p.78

Todavia, ao mesmo tempo que constata o caráter efêmero das canções populares de seu tempo ( idéia que poderíamos estender ao dias de hoje), Flusser observa sua capacidade de captar certos anseios, pensamentos coletivos: Uma análise fenomenológica e existencial dos hit songs da atualidade revelaria por certo a "alma do povo".p.78

Procedendo dessa forma, Flusser se depara com um paradoxo onde de um lado temos a "inautenticidade" de tais canções e de outro sua capacidade de captar certo anseio coletivo.

Mas o paradoxo é só aparente, o próprio Flusser nos revela , a partir de uma dessas efêmeras canções populares que por trás da aparente idiotice do texto esconde-se um cinismo profundo e uma desilusão total com os valores da sociedade. P.78

E logo a seguir ele acrescenta:

A canção advoga, com efeito, o abandono desses valores e sua substituição pela inautenticidade do bate-papo.p.:78

Na verdade, Flusser usa o texto da canção como um "pré-texto" em sua análise de uma dada sociedade, com seus valores e suas formas de inconscientes de manifestação.

Flusser vê na canção analisada a presença de uma questão que funciona como elemento gerador dessa "inautenticidade" e do "cinismo" nela presentes : a "sexualidade mal - disfarçada" a qual Flusser associa , dentre outras coisas ao " pecado".

A partir dessa constatação, ele tece uma série de comentários, observando que a cada instante a letra da canção nos convida a transgredir valores ligados à moralidade.

Porém, essa chamada à transgressão não ocorre de forma explícita. Aparentemente, há uma aceitação desses mesmos valores ( Eu não estou fazendo nada [ de mal] ). Esta frase que , superficialmente, parece estar de acordo com o conjunto de normas previstas socialmente – uma vez que afirma não estar fazendo nada que a contrarie – entretanto, serve apenas para negar esse mesmo conjunto de normas. Explicaremos...

Essa negação ocorre nas frases posteriores e nos gestos que acompanham a música os quais também não escaparam do olhar atento de Flusser. Os gestos denunciariam, segundo ele, uma atitude oposta a que, supostamente, a frase estaria revelando.

Daí , podemos concluir que , ao mesmo tempo que os valores morais são negados , somos convidados a, cinicamente, fingirmos que não estamos transgredindo nada ( ... bater um papo assim gostoso com alguém...).

Para Flusser essa atitude demonstraria o esvaziamento dos valores que a sociedade há tempos tenta impor a todos aqueles que nela vivem. Todavia, diante da impossibilidade de abrirmos mão de tais valores ( o que poderia criar algo muito mais perigoso) somente fingiríamos aceitá-los enquanto nossas atitudes revelariam outra coisa. Neste sentido, a canção seria um hino à inautenticidade.

Ainda partindo dessa análise, poderíamos notar uma certa dissonância entre o discurso imposto pela sociedade – com seus valores – e as atitudes assumidas pelos membros dessa mesma sociedade e que, por vezes, assumem o discurso como seu próprio. Nas palavras de Flusser:

Recomenda-se um fazer de conta que ainda valem os valores. Mas, com um piscar de olhos, permite tacitamente a transgressão dos valores já então esvaziados. É o cinismo do desespero. p : 80

Flusser conclui seu ensaio propondo não respostas mas sim novos questionamentos, sendo talvez sua única certeza o fato de que a resposta não está em um movimento monótono e rítmico das palmas das mãos...


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