Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Ficções Flusserianas:
sobre Ficções filosóficas,
de Vilém Flusser


Sobre a "A perda da fé"

Ilse de Witt de Azevedo

Código - proc. dados:
Sistema de símbolos com que se representa uma informação
numa forma que a máquina possa operar.

O homem – tecido que se dissolve –, porque o código, ou programa, ou a fé que o explica, que o transcende já não lhe serve mais de entremeios com o outro e o mundo. Há uma mudança do programa que programa o homem. Os termos não são religiosos como comumente se espera diante de um tal sintagma – "perda da fé" – são ao contrário, tecnológicos, científicos. Mas o que aparentemente parece nos distanciar da fé, - a Ciência -, é o que inadvertidamente e em certos termos nos leva de volta até ela ou na sua perda como coloca Flusser.

O sistema explicativo que nos circunda e, ao mesmo tempo, dá sentido a toda uma realidade a qual apenas se tem acesso através desse mesmo sistema, tem como base uma leitura linear do mundo. Essa leitura linear do mundo está na raiz da nossa própria escrita, a qual é desde a sua invenção, o meio predominante pelo qual se criou memória e história. Nossa memória e história prevêem um antes e um depois, um começo e um fim, uma causa e sua conseqüência. São, portanto, construídas por e fomentadoras de uma estrutura linear de entendimento, armazenamento e representação da realidade.

Armazenar informações é singularmente definitivo, uma vez que todo o processo implica em dois atos consecutivos: receber e processar informações que, claramente, só ocorrem através de um determinado programa. Esse programa, no entanto, funda-se ainda num código linear, a própria escrita, o texto, enfim, que se encontra na base das nossas memórias e história. É uma forma textual com todas as implicações que aí estão contidas que orienta a nossa reflexão sobre o mundo, que nos constrói e a nossa maneira de interagir com a realidade. O que acontece, portanto, quando esse código linear que embasou toda uma realidade existencial já não é suficientemente significativo para traduzir e ordenar o mundo?

Flusser coloca que a Ciência foi a última crença da humanidade, representou sua fé no perfeito ordenamento do mundo, numa realidade causativa que trespassa toda e qualquer forma política, psicológica, religiosa e histórica da qual o homem se apossou e se apossa para significar a sua existência. O último desses potentados de significação fora, portanto, a Ciência, na base da qual está a Matemática e a Lógica que são por sua vez, também, a base do conhecimento tecnológico atual. Todo o aparato tecnológico que nos cerca atualmente pressupõe, no entanto, um outro tipo de código, o audiovisual. É a possibilidade, como coloca Flusser, da transformação do texto, do script, em uma telenovela ou um filme; da transformação do jornal em telejornal, etc.

O homem e a sociedade enquanto memória representam um meio de armazenamento e distribuição de informações que até então tinha como base um código estritamente linear. Como se coloca o homem diante desse novo código de armazenamento representado pelo audiovisual?

Esse código, inerente a uma realidade tecnológica que avança sempre, não teria quaisquer implicações se ele, como qualquer outro, não fosse em si mesmo significado e forma de significação.

Uma dessas implicações que esse código nos impõe é, sem dúvida, a quantidade de informações que somos obrigados a gerenciar a cada dia. O processo de transmissão de informações é excessivo e massificado, vem do que Flusser chamou de "ilhas". É possível no entanto, para o homem programado ainda, segundo um código linear, armazenar, reprocessar e produzir informação significante a partir desse ponto, dessa ilha de informação que paira no meio do tecido social?

O código linear atinge o seu ápice quando esgota sua capacidade de significação e ordenamento do mundo ou como coloca Flusser, quando realiza todas as virtualidades contidas no seu programa. Esse código que permite a máquina-homem operar não é mais o mesmo; não nos permite lidar com o mundo de maneira eficiente e suficiente e se destaca como um corpo estranho na nossa interseção com a realidade; já não é por si mesmo significado. Em decorrência desse estranhamento e distanciamento de um código que sempre nos pareceu inerente, perdemos a fé nele e em todos os processos de significação dos quais era parte fundante.

Em compensação outro código se elabora, é elaborado e nos constrói mas com o qual já é impossível se relacionar em termos ingênuos. As próximas gerações, no entanto, que nele serão nascidas e criadas, já não serão possuidoras dessa consciência de um código que não se lhes adere. Para elas será, de novo, como uma segunda pele, perfeitamente ajustável e ajustada.

Crises de significação, digamos assim, parecem ser mais constantes, na medida em que sistemas muito fechados simulam serem abertos e interativos, pressupondo o infinito. No entanto, tais sistemas que simulam abertura são esgotáveis mais rápido e de maneira insatisfatória, deixando o homem e a sociedade, iminentemente programados para eles, mais abertos à desesperança, à "perda da fé" e à mercê de uma incapacidade de significar a própria existência. Operar desvios é profícuo, fazer aparecer o parcial desses códigos, programas, ou o nome que se dê, é enriquecedor e estimulante e parece se colocar como um contraponto ao homem massificado e a uma cultura que o nivela por baixo e que a ele se cola como um único e impositivo denominador.


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