Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Ficções Flusserianas:
sobre Ficções filosóficas,
de Vilém Flusser


Sobre "Memória"

Guilherme Preger

No ensaio Memória ( FLUSSER, 1998:177) Vilém Flusser especula sobre o impacto cultural do desenvolvimento das "memórias eletrônicas". Essas memórias, por serem mais "duráveis e fiéis" que as precedentes, permitem melhor acúmulo, recuperação e recombinação das "informações", liberando os cérebros humanos da sobrecarga de informação e os tornando disponíveis para "o processamento" das mesmas "armazenadas eletronicamente". Com isto torna-se necessário redefinir o conceito de "memória" (e o de cultura) e abre-se espaço para uma revolução cultural e criativa "que está emergindo".

Flusser distingue dois tipos de memória. A primeira, comum a todos os seres vivos, é a memória genética. Todos os seres adquirem informações que estão guardadas na biomassa e são transmitidas e herdadas geneticamente. A transmissão dessas informações é problemática, pois no processo de reduplicação das células genéticas ocorrem erros, mutações. Alguns erros são esquecidos, mas os que permanecem representam a "evolução da vida". Essa evolução divergente através das mutações tem como resultado a diversidade das espécies.

A segunda memória, especificamente humana, é a cultural. Os seres humanos adquirem informações e a armazenam para utilização das gerações futuras. Essa memória define e dá dignidade ao homem. A transmissão das informações culturais, no entanto, é complicada. As memórias culturais são passíveis de deformação e a maior parte delas já se perdeu. O processo de armazenamento e transmissão tem sido o mesmo desde tempos remotos. As informações adquiridas são codificadas e gravadas em objetos para que as gerações futuras as recuperem e as armazenem em seus cérebros. Primitivamente os objetos escolhidos para servirem de suporte de memória foram "objetos duros ( pedras e ossos)" e "vibrações de ar (ondas sonoras)".

Esta estratégia primitiva se conservou até recentemente, mas é pouco eficiente. Os objetos duros são "relativamente duráveis", mas pouco "fiáveis", porque são utilizados como instrumentos para outros fins sendo assim consumidos e as informações neles contidas são perdidas por desgaste . Para contornar esse problema utilizou-se para suporte de memória objetos exclusivamente destinados a essa função, os "monumentos", que apesar de duráveis são de difícil acesso. Já as vibrações do ar são facilmente acessíveis, mas efêmeras e susceptíveis a ruídos que deformam a informação nelas guardadas. Mesmo assim o ar foi o suporte mais utilizado porque mais "facilmente codificável ( em línguas faladas)".

Os problemas inerentes às vibrações de ar exigiram a elaboração de nova estratégia. Os fonemas, que são as informações codificadas nas ondas sonoras, foram "transcodificados" para serem guardados em objetos duros (manuscritos). O alfabeto foi inventado. A biblioteca passou a ser o mais importante dos suportes de memória, embora os demais continuassem a existir. Apesar da durabilidade da biblioteca ser problemática, as informações nela guardadas podem ser facilmente copiadas e recuperadas: "com a invenção do alfabeto se inicia a história sensu stricto."

A emergência da biblioteca teve, para Flusser, conseqüências inesperadas: o surgimento de "ideologias" que marcam a história ocidental. Por essas ideologias a língua deixa de ser considerada como um canal que transmite informações de homem para homem para ser percebida como armazém de informações, como a própria biblioteca. Assim os homens são vistos como transmissores de informações para essa língua-biblioteca. Com isto a memória cultural é reificada e concebida enquanto "estrutura transumana".

A inversão no conceito de memória se manifesta nas ideologias platônica e talmúdica. Na ideologia grega a "memória transumana é espécie de espaço (topos uranikós) no qual são armazenadas as informações ( as formas, idéias)." Somos decaídos desse espaço para o mundo das aparências efêmeras, quando atravessamos "o rio do esquecimento (lethe)". O esquecimento não apaga a memória mas a encobre. Devemos desencobrir a memória através da filosofia para retornar ao nosso mundo originário que é uma forma de "céu". Pela ideologia judaica "a memória transumana é espécie de rede". Ela é o diálogo que mantemos uns com os outros. Participamos da memória quando nos superamos a nós mesmos e reconhecemos os outros: " E seremos guardados em tal memória (seremos imortais) na medida em que, por nossa vez, formos reconhecidos pelos outros. ... Ora, reconhecer o outro implica reconhecer o Totalmente Outro". A participação nesse diálogo é a nossa forma de participar da memória transumana, ou "Deus". Segundo flusser o cristianismo sintetiza essas duas ideologias.

Essas ideologias coincidem no fato em que ambas confundem a memória com seu suporte, o que significa "reificar a memória como se fosse "coisa": "céu", "Deus" e, consequentemente, "alma". Colocados em termos atuais, tais ideologias confundem software com hardware. Tal confusão é explicada pelo filósofo como reflexo da situação em que surgiram, quando a memória cultural foi identificada com língua falada transcodificada em escrita. Como as vibrações de ar são impalpáveis tornam-se também inconcebíveis:

"Os termos que designam vibrações de ar (pneuma, ruakh, spiritus) designam, portanto, igualmente algo de inconcebível. se o suporte de memória é inconcebível ("espiritual"), a tentação de confundi-lo com a memória mesma (confundir as informações armazenadas com o armazém) e depois reificar a memória ( espiritualizá-la) torna-se irresistível" (p. 182).

Para Flusser, o impacto das memórias eletrônicas sobre essas ideologias será "desideologizante". A invenção da imprensa já poderia ter causado esse impacto uma vez que "o livro impresso é claramente mero suporte de memória". O gesto de imprimir revela que uma coisa é a manipulação de memória, ou seja de letras, outra é a manipulação do suporte, o livro. No entanto, para o teórico, tal impacto não teve conseqüência desideologizante porque "teria ameaçado o sistema de valores da burguesia emergente enquanto classe dominante no século XV". Assim,

"A invenção da imprensa ( importante passo em direção a elaboração de memória cultural eficiente) não contribuiu para a libertação do conceito de "memória" das brumas reificantes que o envolveram desde a invenção do alfabeto" (p. 182).

O impacto das memórias eletrônicas será mais violento. Ele mudará "a nossa maneira de percebermos, concebermos e manipularmos a memória e, consequentemente, "a imortalidade"." As memórias eletrônicas ou artificiais simulam "a função memorativa do cérebro em objetos inanimados" e com isso "nos concedem distância crítica em relação ao processo de armazenamento". Essa distância permitirá distinguir "dois tipos de gestos: o que manipula informação e o que imprime a informação sobre suporte". O segundo tipo é mecanizável e realizável por máquinas inanimadas. O primeiro pode ser parcialmente realizado por máquinas inanimadas, mas parcialmente praticável apenas por inteligências humanas. A partir do exposto, o filósofo propõe uma "nova antropologia": "o homem se revela ente que se distingue dos demais seres vivos por sua capacidade de processar informações adquiridas ( pela sua "criatividade")."

É preciso, afirma Flusser, submeter o conceito de memória a uma crítica desideologizante. O substantivo "Memória" na verdade significa o mesmo que o verbo "memorizar" ou "processo de armazenamento": "trata-se de processar uma informação adquirida, de enquadrá-la no contexto das previamente adquiridas e de alimentá-la para dentro de um armazém, do qual possa ser recuperada." "Memória" não é um "algo" mas um "como". Finalmente Flusser sugere que o conceito de alma seja reformulado:

"O conceito passaria a ser interpretado enquanto capacidade especificamente humana de processar informações adquiridas e de armazená-las: um indivíduo seria tanto mais "alma" quanto maior o número de informações por ele processadas, e seria tanto mais "imortal" quanto maior a quantidade de informações por ele memorizadas em algum suporte"(p.184).

Vilém Flusser admite que tal reformulação desreificante certamente provocaria repugnância aos "que aderem às ideologias vigentes" mas não significa uma profanação à dignidade humana porque torna ainda mais misteriosa a capacidade do homem de armazenar e processar dados culturais. Por outro lado, as memórias eletrônicas contém virtualidades revolucionárias ainda não conscientizadas que podem "vir a derrubar os pilares sobre os quais repousa nosso edifício de valores".  


 A partir do ensaio é possível formular algumas questões pertinentes para discussão em sala de aula:

  1. Flusser utiliza "memória" num sentido de aquisição e armazenamento de informações de geração para geração. Mas o que é "informação" ? Flusser não define tal conceito nesse texto. O conteúdo cultural pode ser traduzido por informação? Talvez seja essa uma das conseqüências do impacto das memórias eletrônicas no conceito de cultura. O ensaio do filósofo então já seria devedor desse impacto.
  2. Se a memória cultural consiste em adquirir e armazenar informações qual seria a função do processamento criativo desses dados?
  3. A reflexão anterior sugere uma outra: Flusser "desideologiza" (para usar sua expressão) o conceito de memória e também o despolitiza. Mas haveria processo de aquisição cultural que não envolvesse disputa de poder? Podemos lembrar de Walter Benjamin e seu conceito de história: "Nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie" (BENJAMIN, 1993: 225). Assim, o argumento de Flusser de que a burguesia limitou o impacto reificante do surgimento da imprensa precisa igualmente ser estendido ao surgimento das memórias eletrônicas. Todas as potencialidades criativas da informática encontram-se dependentes do grau de liberdade definido pelo poderio econômico. Ou não?
  4. Outra reflexão derivada da última: a humanidade passou por várias fases de explosão criativa, por que não presenciamos uma atualmente se os meios estão mais disponíveis do que em qualquer outro momento histórico? É possível, no entanto, que uma criatividade sem igual esteja se manifestando sob uma forma que não possamos reconhecer ainda?
  5. A concepção proposta pelo filósofo para "alma" não se aproxima do conceito de "gênio" elaborado pelo romantismo? O gênio é aquele que tem mais alma?
  6. Para uma reflexão posterior: qual afinal o impacto das memórias eletrônicas na literatura? Qual o futuro do livro? A poesia e o romance são produtos arcaicos ou válidos atualmente? Por que os cursos de letras têm dificuldade de discutir a função da literatura na sociedade diante das mudanças tecnológicas e políticas?

 BIBLIOGRAFIA

Benjamin, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e Política. 6a ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.

Flusser, Vilém. Ficções Filosóficas. São Paulo: Edusp, 1998.


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