Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Ficções Flusserianas:
sobre Ficções filosóficas,
de Vilém Flusser


Sobre "5 ... C x B?"

Elivania da Costa Azevedo

Vilém Flusser é claro em seu convite: transformar o problema do significado em assunto palpitante. A escolha deste adjetivo certamente não é casual já que, à frente, a partir de uma frase da língua enxadrística, o texto discorrerá sobre o significado que imprimimos à vida, numa extensão do raciocínio que analisa possíveis leituras a serem feitas por personagens bastante distintos entre si: marciano, datilógrafo, analfabeto e enxadrista lerão o ideograma 5 ... C x B? conforme sejam alocadas experiências próprias ao que é tido como texto, num processo onde significante só se torna em significado a partir da decodificação possível ao seu leitor- ainda que esta decodificação seja aparentemente tida como vazia e não sem razão este vazio torna-se, então, a leitura realizada.

Certamente, a relação entre significado e significante é passível de ser tratada sob discursos bastante variados. Flusser escolheu a curiosa forma de fazê-lo a partir de uma expressão que desvenda uma realidade só pertencente ao xadrez e que, por isso, é indecifrável para a maioria dos mortais. A frase é composta de informações objetivas - trata-se de uma jogada em que, no quinto lance, o cavalo preto come o bispo branco - e subjetivas - o ponto de interrogação estaria evidenciando o questionamento realizado por um emissor acerca do erro presente em tal jogada. A partir da tradução realizada, Flusser brinca de imaginar os quatro personagens já citados formulando leituras possíveis ao ideograma. Assim, o marciano o leria como um fenômeno terrestre - como o são uma nuvem ou um cachorro -, como uma realidade decodificável ainda que lhe falte o recurso do conhecimento prévio. O datilógrafo o veria como um amontoado de tipos, uma casualidade sem significação (o que, evidentemente, também é leitura). Para o analfabeto, o texto é tão indecifrável quanto um poema de Shakespeare ou a manchete do jornal: ele sabe, entretanto, que ali há mistério, tão real quanto impenetrável. Ele segue sabendo que outros poderão lê-lo, já que, assim acredita, são alfabetizados. Ao enxadrista, cabe a leitura unívoca que apenas decodifica um determinado lance no jogo de xadrez: se é verdadeiro ou falso, facilmente ele o saberá.

O jogo proposto pelo ensaísta pretende ir além do que se poderia depreender de uma certa formulação acerca de uma jogada de xadrez. Ele deseja estendê-lo às leituras que fazemos da vida humana e se utiliza dos mesmos personagens para identificar quatro possíveis modos de ser: o datilógrafo se restringe a ver tudo como um grande absurdo, o que o permite viver a despeito de tudo e aceitar o nonsense inerente à vida, com relativa simplicidade; para o marciano, não se trata de um significado que a vida ‘tenha’ mas de um que ele ‘dê’ a ela, a partir, claro, do conhecimento que possua - tanto mais conhecimento, maior a profundidade com que poderá avaliar a realidade vida. Para o enxadrista não há qualquer problema, já que suas leituras da vida admitem apenas uma interpretação: os símbolos são claros e apontam para o fato de que o que dá significação à vida é a realidade - basta não perdê-la de vista. O analfabeto verá tudo como um grande mistério e, sabendo que nada sabe, poderá permitir-se leituras esvaziadas de conceitos prévios. Sua ignorância de conhecimento e símbolos preestabelecidos é a sua mais valiosa oportunidade.

Ao analisar tão variadas formas de leitura, Flusser nos instiga a estender o raciocínio e lançá-lo a outros campos e, entre outros quaisquer, o da literatura. Teóricos que se limitam a atestar encontros e desencontros com a realidade conhecida, críticos que exigem conhecimentos prévios para que a leitura seja desvendada, leitores ingênuos que admitem apenas o nonsense do texto apresentado e não se aventuram a uma elaboração própria. Quanto aos analfabetos, tornam-se metáfora daquele tipo de leitor que, ainda que desconheça teorias e críticas, abre-se ao texto, como a um desconhecido, sabendo que a ele só tem a oferecer a sua própria ignorância e o seu temor do mistério de tudo.


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