Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Ficções Flusserianas:
sobre Ficções filosóficas,
de Vilém Flusser


Sobre "Um mundo fabuloso"

Débora Garcia Restom

 O autor anuncia que vai contar uma fábula, que no mundo atual só pode ser sem moral óbvia e cujos personagens não podem ser mamutes nem raposas. Estas espécies de animais, segundo o autor, se encontram "existencialmente extintas". Mais interessantes atualmente são o octópode, a solitária e o embrião, que dialogarão sobre Darwin, mas um Darwin freudiano.

O primeiro a falar é o octópode. Falará como representante mais evoluído dos moluscos e sua intervenção consistirá numa "apreciação conclusiva da teoria darwiniana". É, portanto, com a arrogância de ser mais evoluído que apresenta e defende a teoria darwiniana. O efeito é uma caricaturização do darwinismo. As expressões "mais evoluídas", " braço subalterno", "avanço rumo às praias", "perfeição maravilhosa", "riqueza dos órgãos sensoriais" ressaltam a estrutura hierarquizada dessa exposição baseada no pensamento de Darwin. E, junto com ela, aparece, no discurso do octópode, a arbitrariedade no julgamento do que é superior:

(...) A perfeição maravilhosa da minha estrutura o prova. Comparem, por exemplo, a minha simetria radial com o primitivismo da simetria axial dos vertebrados. Vejam como sou belo, se comparado com a forma grotesca e repulsiva do homem.

Ora, por que a simetria radial seria superior à axial? Ou como afirmar que um polvo é mais belo que um homem? O que Flusser consegue, ao pôr a defesa da teoria darwiniana na boca de um ser que se diz beneficiado por ela, é evidenciar que há um ponto de vista por trás dessa teoria. A hierarquização, base do discurso evolucionista, que sempre apareceu absolutizada é aqui relativizada: se se afirma que uma espécie é superior a outra, é preciso também dizer de que lugar se fala. A parcialidade do octópode, reafirmada até o fim de sua fala ("Aceito a teoria darwiniana, porque prova, embora de maneira primitiva e tipicamente vertebrada, a minha superioridade.") dá a pista para entendermos a "fecundidade" dessa teoria: o que precisava ser provado era a "superioridade" de uns em relação a outros.

A seguir, intervém a solitária, dizendo-se "a realização mais perfeita" do processo evolutivo. Apresenta-se como "conhecedora do íntimo do homem" e a palavra ‘íntimo’ está aqui só na sua acepção espacial mesmo, pois a sua visão do homem é tão reducionista quanto a do octópode. Ela é a representante do naturalismo freudiano e vai explicar a evolução da vida como um processo libidinoso.

Se é a força da fertilidade que move a vida, a solitária, que além de reunir em si tanto o aparelho reprodutor masculino quanto o feminino, produz filhos em larga escala:

(...) Repare nos proglotídios, nos elos que perfazem a minha cadeia. Cada elo é portador de um aparelho sexual enormemente complexo e que reúne o princípio masculino e feminino numa síntese perfeita. Os ovos que são produzidos por cada elo alcançam o número de 50 mil, o que por si só já é uma realização apreciável. Mas eu consisto de 1500 elos. Produzo portanto 75 milhões de ovos.

Deste ponto de vista, prova orgulhosamente que, em termos de "potencialidades libidinosas", ela está no ápice da pirâmide evolutiva: "Sou desinibida. A minha existência é um único ato sexual grandioso e ininterrupto."

O caráter maquinal que é dado a esse extravasamento da libido subverte o discurso darwinista freudiano, mostrando que, num pensamento que pressupõe modelos rígidos do que é saudável, o que é libertador pode se tornar escravizante. E, paralelamente à construção do personagem do octópode, a criação do ponto de vista da solitária tem como efeito a relativização dos conceitos de liberdade e escravidão.

(...) Alcancei essa altura vertiginosa de realização porque superei a escravidão da alimentação e do movimento. Transformei os vertebrados em meus escravos. Eles fornecem a minha alimentação já digerida e são os veículos que me transportam. Graças a eles tornei-me livre para a tarefa mais nobre que é a realização poderosa das potencialidades libidinosas. (...) O homem é o dono da natureza, e eu sou a dona do homem.

Na teoria darwinista, acrescida de uma dimensão freudiana, o que fica provado, a julgar pela adesão irrestrita da solitária a ela, é que a vontade de dominar é inerente ao homem.

Como contraponto aos dois personagens darwinistas, surge em último lugar o "embrião". Ele alegará que o que tem ajudado o homem a sobreviver tem sido o amor e o espírito, que são ignorados pelo octópode e pela solitária . A expansão da libido é contida pelo sentimento do amor, que a solitária não prevê. Do ponto de vista dela, o qual é ironicamente legitimado pelo embrião, ele é inibido e, portanto, inferior. Do ponto de vista do octópode, que o embrião também ironicamente leva em conta, ele é fraco e doente e, portanto, mal adaptado biologicamente. Entretanto, o embrião considera o homem, num sentido dialético, a meta da evolução, pois é da fragilidade da vida que nasce o amor, que por sua vez "tudo vence, inclusive a própria vida". Diferencia-se, então, o embrião do octópode darwinista e da solitária freudiana por não ser "condicionado apenas biologicamente" e pertencer a uma espécie que possui uma reserva mental, ignorada pelos outros dois personagens.

Ao apelar para a forma da fábula, Flusser cria uma dubiedade. Se fabularmente encaramos os animais como homens, o que ressalta é a arrogância e parcialidade (não isenção) com que o homem se coloca no centro de tudo. Se, ao contrário, consideramos os personagens simplesmente como animais (já que não são os animais tradicionais das fábulas), o que chama a atenção é que as teorias naturalistas projetaram um homem parcial (não integral), cuja realização mais aperfeiçoada não o diferenciaria de um polvo ou de uma tênia.

O personagem do embrião seria, por um lado, igualmente fabular, pois ainda não é homem e, por possuir forma semelhante à da solitária, aproxima-se do animal. Por outro lado, se, a exemplo do que fizemos com o octópode e com a solitária, o projetamos a partir do que fala, temos um homem, ainda em esboço, mas não mutilado (sem fraqueza, sem espírito, sem amor) como o homem condicionado apenas biologicamente surgido das teorias naturalistas.

O título, após a leitura do artigo, adquire um caráter irônico. Acreditar num mundo natural lógico é tão "primitivo" (entre aspas como coloca Flusser, já que este termo assume uma conotação pejorativa depois da teoria evolucionista) quanto acreditar num mundo em que os animais falam. O discurso científico aparece assemelhado ao discurso ficcional, porque igualmente não se baseia na realidade. Se no mundo biológico não existem valores, as teorias naturalistas não passam de atribuição de valores humanos – e, portanto, culturais, a ele – e o fato de o espírito e o amor não estarem presentes nessa construção teórica, numa relação dialética, reflete e (in)forma a condição humana.


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