Segundo Johan Huizinga, o termo ludere ( oriundo de ludos), etimologicamente, explica-se como algo pertencente à esfera da "simulação", entendendo simulação como algo que " toma o aspecto de ".

"Sabonetes ", de Vilém Flusser, parece atender ao jogo ilusório acima.

A priori, o texto/carta, de autoria de Flusser, pertence ao discurso técnico-científico graças à sua estrutura formal: presença de um remetente, sob a forma de um órgão ad hoc - Ministério da Justiça, Departamento do Planejamento; de um destinatário - Instituto Global de Pesquisa Tecnológica, mais especificamente, Laboratório de Química Orgânica, além, é claro, do assunto - saponificação de gorduras -, exposto através de linguagem acadêmica.

Processando a leitura, percebemos que o autor problematiza (ironicamente) a questão da distribuição de recursos para os países do Primeiro, Segundo , Terceiro e Quarto Mundo, sugerindo um parâmetro quantificativo - o acúmulo de gordura acumulada nos corpos humanos.

Segundo o autor, seria a quantidade de gordura armazenada no corpo o que mais se identificaria à impossibilidade de quantificar a situação econômica, social, política, cultural e religiosa desse mesmo corpo supracitado. Talvez estejamos falando da impossibilidade de se mensurar a quantidade justa de recursos, ou, segundo Flusser, seria a forma metódica de se pensar os parâmetros de injustiça. Trata-se de uma questão metafísica.

O filósofo estabelece uma relação entre acúmulo de gordura e emagrecimento. Os países do Primeiro Mundo parecem não se preocupar com o sobressalente tecido adiposo. Os norte-americanos, v.g., foram apontados como espécimens portadores de gordura patológica. Isso talvez se explique pela acumulação de capital , ou melhor, de gordura no cérebro.

Por sua vez, os países do Segundo Mundo estariam num processo de transição - acúmulo excessivo de gordura ( concentração de capital) e carência dos (as) mesmos (as).

Flusser não considera um equilíbrio tal transição, muito pelo contrário: " tudo leva a crer que o acúmulo de gordura excessiva é o móvel de tal mundo " . Lembremos de Napoleão, o porquinho de George Orwell, em Animal Farm.

Já no Terceiro Mundo, o emagrecimento é compulsório. Mas, há corpos revolucionários - os que fazem de tudo para engordar, mas acabam esbarrando em corpos excessivamente gordos no seu próprio meio: é a típica luta de classes.

Por último, os corpos esqueléticos do Quarto Mundo fadados à letargia . Às vezes, proporcionam, dialeticamente, a felicidade aos países de Primeiro, Segundo e/ou Terceiro Mundo.

O método empírico de distribuição de gordura inter/intramundial - "comércio internacional ", segundo o professor tcheco, não pode funcionar: os países não abrem mão do que têm ou possam vir a ter, independentemente do Mundo a que pertençam.

Surgiu, então, a necessidade de um método mais racional - a saponificação das gorduras. Seguem os subprodutos dos saponáceos:

Remédios para os comedores de bacon e ovos fritos pela manhã, bem como para todos os países do Primeiro Mundo;

Explosivos contra os movimentos do Terceiro Mundo;

Aguardente para afogar as mágoas dos países do Segundo Mundo;

Sabonetes para todos, inclusive para nós, num futuro próximo.