Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Ficções Flusserianas:
sobre Ficções filosóficas,
de Vilém Flusser


Sobre "Animação Cultural"

Adma Viegas

Em seu ensaio "Animação Cultural", Vilém Flusser faz uma crítica à civilização pós-moderna, partindo de um ponto de vista fenomenológico. Através do procedimento lúdico e da utilização do recurso da ironia (um hipotético discurso triunfal da camarada mesa-redonda sinalizando uma "tomada de poder" pelos objetos...) Flusser promove uma discussão a respeito de uma faceta do mundo contemporâneo, ou seja, o declínio do sujeito, entendido como ser individual pensante, e da subjetividade. Por subjetividade entende-se tudo aquilo que pertence ao pensamento humano e apenas ao pensamento humano, em oposição ao mundo físico, à natureza dos objetos aos quais ele se aplica.

Após a Revolução Industrial do Século XVIII, e especialmente agora, com a automação, o homem vem perdendo lugar para as máquinas. A questão foi discutida no ensaio "Para Além das Máquinas", em que Flusser afirma que a "circunstância de ser liberado do trabalho pela máquina não equivale, de modo algum, a ser o sujeito da história, mas sim que essa circunstância e esse estado equivalem melhor a um funcionar, em forma de consumo, como uma função do aparato". (1)

O filósofo reputa como ingênua a crença de que, ao substituir o homem, as máquinas (objetos) o libertariam do trabalho alienante, transformando-o em sujeito da história. A realidade do século XX nos vem sinalizando precisamente o contrário: na medida em que se transformou em mero atributo do aparato, o homem foi se tornando cada vez menos livre, num processo crescente de alienação e coisificação.

Essa objetificação do homem vem de encontro aos pressupostos da Fenomenologia, que surgiu num contexto histórico de afirmação do sujeito. O mundo só existiria para um sujeito que lhe dá significado. O homem só é compreendido na relação com os objetos, mas é ele que dá significado ao mundo. A pós-modernidade instaura a primazia do objeto sobre o sujeito; o valor da subjetividade se encontra depreciado.

"No fundo a nossa Revolução não passa de inversão da relação homem-objeto. Em vez de funcionarmos em função da humanidade, esta passa a comportar-se em função do nosso próprio funcionamento". (2)

O autor realiza no ensaio uma crítica ao nihilismo, à deterioração dos valores que nortearam a civilização ocidental. O nihilismo é a doutrina segundo a qual não existe qualquer verdade moral ou hierarquia de valores. A personagem-mesa lamenta que a ciência ainda continue dominada por valores. É uma questão a se discutir, pois diversas descobertas científicas recentes, como a clonagem de seres vivos, possibilitam que coloquemos a discussão sobre a questão ética no na ordem do dia. Que consequências a descoberta da clonagem poderá trazer para o futuro da humanidade? E se um dia for permitida a clonagem de seres humanos? Em caso positivo, que utilização poderá ser feita disso pelo poder político? Pelas corporações ?

O objeto tem um significado próprio; ele não precisa do homem. O ensaio ilustra a atual primazia da objetividade sobre a subjetividade. O mundo moderno, regido pela técnica, não mais cultua valores absolutos. Segundo Nietzsche, o homem matou Deus. Os valores superiores se depreciaram, mas o homem colocou outros em seu lugar: a ciência, a tecnologia, os computadores, a globalização, o mercado, os meios de comunicação de massa. Não mais como "resultados de produção humana, mas animação programadora do comportamento humano". (3)

Flusser, com essa crítica, dá a entender que o mundo pós-moderno dá primazia ao objeto sobre o sujeito, sendo essa condição indesejável. Mas é um fato irreversível nessa etapa da história da humanidade; para modificá-lo teríamos que implodir o modelo de civilização na qual estamos assentados (quem sabe voltando à sociedade pré-industrial, ou simplesmente ao tempo das cavernas...). Penso que " Animação Cultural" deve ser lido e discutido em conjunto com "Para Além das Máquinas" pois os dois ensaios são muito próximos e complementares. O primeiro de forma lúdica, o segundo de modo mais analítico, discutem a questão do declínio da subjetividade no mundo contemporâneo.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS.

  1. Vilém Flusser. Para Além das Máquinas. in: Literatura e Sistemas Culturais. Rio. Eduerj, 1998. p.16.
  2. ___________. Animação Cultural. in: Ficções Filosóficas. São Paulo. Edusp. 1998. p.146
  3. ____________. Idem, Ibidem, p. 146

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