Nasci em Praga em 1920 e meus antepassados parecem ter habitado a "Cidade Dourada" por mais de mil anos. Sou judeu e a sentença "o ano que vem em Jerusalém" acompanhou toda a minha mocidade. Fui educado na cultura alemã e dela participo ativamente há vários anos. Embora minha passagem por Londres em 1940 tenha sido relativamente curta, ocorreu em época de vida em que a mente se forma de modo definitivo. Engajei-me, durante a maior parte da minha vida, na tentativa de sintetizar cultura brasileira a partir de culturemas ocidentais, levantinos, africanos, indígenas e extremo-orientais (e isso continua a fascinar-me) . Atualmente moro em Robion, sul da França, integrando-me no tecido de aldeia provençal cujas origens se perdem na bruma do passado. (1)
Este é o Flusser que conheço, e aprendi a conhecer, ao longo de espaços e tempos os mais descontínuos. Figura humana impressionante, dessas que causam impressão de matriz em nossos núcleos pessoais. Mesmo não havendo empatia, no primeiro ou nos encontros subsequentes, jamais se fica neutro. Flusser ama o desafio, o corpo-a-corpo intelectual, provocando-o mesmo, quase como a um gesto iniciático. E que venham as críticas, elogiosas ou não, tanto faz! " Um marco na cultura alemã ", "um desrespeito filosófico, de Platão a Wittgenstein" : as duas críticas diametralmente opostas lhe foram dirigidas por ocasião de um seminário em Hamburgo sobre seu livro "Fur eine Philosophie der Photographie"(2). Flusser relata a cena com a melhor das gargalhadas - traço personalíssimo desse autêntico homo ludens, um Macunaíma judeu-tcheco-paulistano.
Em sua passagem por São Paulo em 1986, a convite da 18ª Bienal para proferir palestras, ouvi-o falar sobre um de seus temas prediletos: texto/imagem. As sentenças, destiladas pelorigor da razão - paixão (como Flusser, poucos conseguem amalgamar) eram como chicotadas, querendo sacudir-nos da letargia a que nos condena uma época ruidosa. Querendo incomodar, para que não se tivesse a ilusão de não sermos por ela responsáveis, ou de que o tudo pensar e repensar não valesse mais a pena. Mas aquelas sentenças queriam também abraçar, atrair novos parceiros ao diálogo. Flusser é assim: sempre faz pensar. E pensar dói... Pois continua o mesmo esse nosso amigo - filósofo, ensaísta, escritor, crítico de arte, professor, agitador cultural - engajando-se para fazer da reflexão alimento de primeira necessidade, gesto corporal do ser, prazer erótico. Não há dúvida que, para ele, o homem total é o ser pensante.
Participo da desconfiança em analogias que tendem rapidamente a se transformarem em metáforas, isto é, transferências de raciocínio adequado a um dado contexto para contexto inapropriado No entanto, nada captaremos sem modelo. De modo que todo modelo deve, primeiro, procurar pescar o problema, e depois, procurar modificar-se, ou em certos casos, ser jogado fora. O dever de gente como nós é engajar-se contra a ideologização e em favor da dúvida diante do mundo, que de fato, é complexo e não-simplificável. Engajamento difícil, por certo, mas nem por isso, apolítico. Para nós, Polis é a elite decisória e não a tal Massa (3).
A intenção que move este relato, que se quer subjetivo, é possibilitar um testemunho humano, não mais que isso, da vívida presença que teve entre nós, presença esta geralmente incompreendida e ora super, ora sub-estimada, deste que é, por muitos, considerado " o genuíno filósofo brasileiro", já que falar de sua obra é tarefa que exigiria plena desenvoltura no percurso do seu pensamento. Se o faço, é certamente apoiada pelo afeto, mas sobretudo, por um tipo de engajamento. Publicar Flusser no Brasil é questão de honestidade, simples reconhecimento do valor de suas idéias e reflexões. Mas falar sobre a pessoa Flusser é querer ir mais longe, penetrar floresta escura, já invadindo espaço transpessoal, quem sabe.
Aprendi o seguinte: ao nascer, fui jogado em tecido que me prendeu a pessoas .Não escolhi tal tecido. Ao viver, e sobretudo ao migrar, teci eu próprio fios que me prendem a pessoas e fiz em colaboração com tais pessoas. "Criei" amores e amizades (e ódios e antagonismos) . E´ por tais fios que sou responsável. O patriotismo é nefasto porque assume e glorifica os fios impostos e menospreza os fios criados. Mas o que importa é isto: não sou responsável por meus laços familiais ou de vizinhança, mas por meus amigos e pela mulher que amo.
Quanto aos fios que me prendem a pessoas, tenho duas experiências opostas. Todas as pessoas às quais fui ligado em Praga morreram . Todas. Os judeus nos campos, os tchecos na Resistência, os alemães em Stalingrado. As pessoas às quais fui ligado (e continuo ligado) em São Paulo, em sua maioria, continuam vivas .Embora, pois, Praga tenha sido mais "misteriosa" que São Paulo, o nó górdio cortado foi macabramente mais fácil (4).
Quando o conhecemos - refiro-me a um grupo de jovens universitários dos anos 60, geração que cultivava um jeito de vivenciar intelectualmente a sua angústia e cuja ironia não havia ainda descambado para o deboche - estávamos todos submersos no grande vazio que é a busca de sentido(5). Flusser, estrangeiro no mundo, apátrida por excelência, assistiria a tudo, promovendo tudo. Mas entre o seu engajamento na cultura brasileira e o nosso autocontraste no pano de fundo nativo, uma sutil dialética se estabelecera.
Nós, os migrantes, somos janelas através das quais os nativos podem ver o mundo.
Seria ele, para nós, esta janela?
Mistério mais profundo que o da pátria geográfica é o que cerca o outro. A pátria do apátrida é o outro.
Seríamos nós, para ele, esta pátria?
Jovens daquela geração inquieta e reflexiva, vivenciávamos a saga de uma época em que, após ter aplaudido o célebre é proibido proibir dos estudantes na Europa, nada passava mais a ter significado. Os anos 60 - se de um lado, traziam marcas como a rebeldia dos Beatles; a revelação do sexo, e a partir daí, o culto ao amor livre do movimento hippie e a escalada social do bissexualismo; o fracasso da potência americana no Vietnã, onde a inteligência venceu as armas utilizando os segredos da floresta; e toda uma poesia desordenada - de outro lado, deixou farrapos de um derradeiro "romantismo": o desejo da mão jovem querendo reconstruir o mundo e impedida pelos velhos (como desde sempre); o olhar do mundo culto e politizado para o primeiro movimento de objetivos definidos na América, ao som do cubanos si, yankees no; a resposta de uma "geração triste" que começava a se redimir pela música e a poesia ("Tropicália" e "Os Novíssimos", para citar alguns) .
No campo da filosofia, Sartre, Camus e demais existencialistas marcavam a juventude intelectual brasileira, embora a grande maioria não tivesse (como ainda não tem hoje) canal propício e de livre acesso a tudo isso. O escritor baiano-paulistano Jorge Medauar costuma dizer que o Brasil não tem linha filosófica porque não tem pensadores. Nosso grupo, porém, era privilegiado: frequentávamos a casa de Flusser. Lá se canalizavam os turbilhões, ventos e brisas do mundo cultural-filosófico, em tertúlias que se alongavam por sábados e domingos. E quantas vezes não éramos surpreendidos por Guimarães Rosa, Vicente e Dora Ferreira da Silva, Milton Vargas, Miguel Reale, Samson Flexor, Mira Schendel e tantos mais! Flusser foi se revelando professor, cercado por aqueles moços e moças, de modo doméstico e peripatético - embora sempre sentado em sua poltrona predileta no jardim-de-inverno daquela casa no Jardim América - envolto às fumaças de seu cachimbo inseparável. Não há como apagar os primeiros passos na filosofia ensinada assim... Paideia construída pelo com-viver, em chão de concretude, por um "modelo" vivo de existência. Tudo isso plasmou as nossas mentes (e os corações, não?) interagindo hoje na circunstância em que vivemos.
Caso clássico de influência poderosa de patriarca intelectual - não faltará quem o diga. Não suportando o peso de tamanha in-formação, hoje alguns o renegam e se refugiam nos labirintos do inconsciente, omitindo-se ao salutar e tão raro confronto de idéias. Não lembraria Flusser, neste aspecto, a personalidade de Freud? Pois como este - subversivo, judeu, emigrado - também não foi aceito pelo establishment acadêmico, criando afetos, desafetos e uma fieira de pupilos dolorosamente estigmatizados.
Ao longo dos trinta e um anos em que viveu na circunstancialidade brasileira, Flusser desenvolveu seu modo de pensar com um vigor e originalidade que cunharam um de seus traços inconfundíveis - o que lhe valeu imagem mitificada, e até certo ponto, desconcertante para certos eruditos que, tantas vezes, com ele se digladiaram. Seus artigos dominicais no Suplemento Literário do Estadão costumavam criar réplicas e tréplicas, estimulando o hábito de se tomar partido em polêmicas (que se hoje são desportivas, naquele tempo eram filosóficas). Uma delas ousou provocá-lo chamando-o de " sedutor da juventude", ao que Flusser prontamente rebateu: que também alguém, no limiar da filosofia, fora igualmente criticado, e até condenado a tomar sicuta...
Assim como Nietzsche, Kierkegaard e tantos outros, Flusser não se propôs a construir um sistema filosófico. Seu pensamento é um fluir generoso que se vai tecendo fora de velhas ou modernas malhas, na urdidura fundante que é a linguagem, "morada do ser", como a nomeia Heidegger. Seu mergulho nas correntes da fenomenologia levou-o à Filosofia da Linguagem, seu campo predileto, ao qual dedicou vários ensaios, livros e cursos. Chegou a criar coluna semanal em jornal, o "Posto Zero" na Folha de São Paulo, de 1969 a 1971, onde fazia uma espécie de análise fenomenológica do cotidiano brasileiro. Quando escreve, e o faz como quem respira o ar saudável da manhã, traduz e retraduz o mesmo texto para as línguas que ama e domina: alemão, inglês, português, francês. (Curiosamente, a língua materna tcheca não lhe soava cara aos ouvidos ; talvez, pela expressividade algo adocicada, dizia...) .
Sinto-me abrigado por, pelo menos, quatro línguas, e isto se reflete no meu trabalho, uma das razões pelas quais me interesso pelos fenômenos da comunicação humana. Reflito sobre os abismos que separam homens e as pontes que atravessam tais abismos, porque flutuo, eu próprio, por cima deles. De modo que a transcendência das pátrias é minha vivência concreta, meu trabalho cotidiano e o tema das reflexões teóricas às quais me dedico (6).
Max Planck diz em sua autobiografia que para haver e vingar uma idéia original são necessárias duas condições: que o "criador" esteja livre e que morra toda uma geração, porque apenas a subsequente estará apta a compreendê-la. Os contemporâneos estão comprometidos e escravizados pela matriz vigente, por isso se assustam com o novo. Eis, numa palavra, o pecado de Flusser: pensar o novo . E, para tanto, estar livre. Livre para gerar idéias e ligá-las ao que acontece à sua volta. Por isso seja tão difícil delimitar as bases do pensamento flusseriano, porque este sempre está correlacionado a fatos, não importa de que natureza. A aguda capacidade de observar o mundo e captar a atualidade, filtrando a ambos pelos conceitos clássicos e daí construindo os seus próprios, tornam Vilém Flusser o pensador para a época "pós-histórica" que atravessamos.
É precisamente a consonância entre observação dos fatos e sua resultante reflexão que nos dá a sensação do verdadeiro. Mas para que tal sensação conduza à verdade, o que ainda nos falta? Aqui transcrevo pergunta feita ao psicanalista Isaías Kirschbaum, que após driblar com mestria (la reponse est la mort de la question, que analista, afinal, não tem necessariamente de ser filósofo ) assim respondeu: "Consenso é que dá cunho de verdade". Daí, minha indagação: teria sido o meio cultural brasileiro propício à formação de um consenso ao pensamento flusseriano, consenso que, por sua vez, teria de ser o fruto maduro de exercícios de crítica por parte da comunidade pensante?
Migrar é situação criativa. Mas dolorosa. Toda uma literatura trata da relação entre criatividade e sofrimento. Quem abandona a pátria (por necessidade ou decisão, e as duas são dificilmente separáveis) sofre. Porque mil fios o ligam à pátria, e quando estes são amputados, é como se intervenção cirúrgica tenha sido operada. Quando fui expulso de Praga (ou quando tomei a decisão corajosa de fugir) vivenciei o colapso do universo. E´ que confundi o meu íntimo com o espaço lá fora. Sofri as dores dos fios amputados. Mas depois, na Londres dos primeiros anos da guerra, e com a premonição do horror dos campos, comecei a me dar conta de que tais dores não eram as de operação cirúrgica, mas de parto. Dei-me conta de que os fios cortados me tinham alimentado, e que estava sendo projetado para a liberdade. Fui tomado pela vertigem da liberdade, a qual se manifesta pela inversão da pergunta "livre de quê" em "livre para fazer o quê". E assim somos todos os migrantes: seres tomados de vertigem (7).
Ao atualizar este texto para onze anos depois - de vez que foi escrito como posfácio ao seu livro "Filosofia da Caixa Preta", o primeiro a ser publicado após ter deixado definitivamente São Paulo - vejo-me obrigada a incluir um novo vazio: a morte de Vilém Flusser. Duas circunstâncias aparentemente coincidentes me impressionam. Primeira: seu comentário sobre as mortes, ambas por acidente na estrada, de Albert Camus e de Vicente Ferreira da Silva . Dizia que esta era a forma de morrer ideal: súbita e digna, sem a dolorosa espera. Pois Flusser morreria em acidente de estrada na Tchecoslováquia, saindo de Praga, ao lado de sua Edith, logo após a merenda e caminhada por aquele bosque em que ambos, namorados desde o pré-primário, costumavam fazer... Segunda: sua obstinação em jamais pisar em Praga. Pois um convite irrecusável o atingiria em cheio, ele que tão apreensivo se sentia com o ressurgir do neonazismo: proferir aula inaugural na Universidade de Praga sobre tema que não hesitaria em escolher : "o perigo dos nacionalismos"... A mesma universidade que teve seu pai como reitor, um dos primeiros ilustres a serem mantidos em cativeiro incomunicável pelo III Reich, e para cujo seio familiar retornaria reduzido a cinzas, luxuosamente embaladas em caixinha de veludo...
Por que impressionam tais coincidências? Ironicamente, arrisco uma explicação junguiana (a despeito de nossas querelas sobre o psicólogo suiço, estando eu sempre pronta à defesa contra aquela tendenciosa comparação Freud x Jung). Creio que a voz do Inconsciente lhe soprou a última e mais íntima mensagem: era preciso reatar aqueles fios amputados e desvendar, de uma vez por todas, a "misteriosa" terra natal... E da maneira mais bela e digna, enlaçado ao mais precioso de seus fios criados : a mulher que amava. Hoje, na pedra tumular de Vilém Flusser, no cemitério judaico de Praga, há uma inscrição de texto bíblico em três idiomas: hebraico (pela religiosidade), tcheco (pela ancestralidade) e português...
Por certo, há um pathos ao falarmos da morte de um amigo. Por isso, o conselho de Mário Bruno Sproviero, amigo comum e um de seus bravos interlocutores, no sentido de que eu " descrevesse um plenum para compensar o vazio da morte temporal (...) já que ele está ressuscitando em seu testemunho e espero que também no Brasil"(8). Pois já não seria esse plenum a presente coletânea de ensaios, a maioria publicada nos anos em que viveu por aqui?
Sei que Vilém Fusser, pela vasta e atualíssima obra que deixou, principalmente em alemão e nos últimos vinte anos desde que emigrou da terra brasileira, tem algo a nos dizer. Algo para nos inquietar. Sejamos livres para ouvi-lo. E, como ele, exerçamos com liberdade o direito de pensar.