A presença concreta do outro se expressa diretamente e
indiretamente: diretamente, através de sua obra e indiretamente,
numa abertura mútua. Estes dois modos de expressão
complementam-se na maioria dos casos. Flexor, por exemplo, não
teria sido Flexor sem o seu monstro "Justine" e seus
quadros estavam presentes em todos os seus diálogos. Rosa
não teria sido Rosa sem Riobaldo, e seus livros estavam
naturalmente presentes em todos os seus diálogos. Por motivos
que não são claros, com Dora isto não acontece.
Não que haja uma ruptura entre ela e seus livros - em seus
poemas vibra uma existência (
Dasein) pulsante e em
seus ensaios filosóficos espelha-se a problemática
de sua concepção do mundo. Talvez a ruptura esteja
em nós mesmos: da presença viva de Dora flui um
clima diferente do de seus livros. Seus poemas expandem a beleza
da harmonia, sua pessoa a beleza da dissonância da vida.
Ambos os climas têm em comum a beleza (com todas as dúvidas
éticas que sempre se ligam ao belo). Duas explicações
dessa ruptura são possíveis: ou Dora exprime em
seus poemas apenas uma parte de sua existência (
Dasein),
ou ela consegue com seus poemas ultrapassar as dissonâncias
existenciais. Em todo caso uma futura crítica de sua obra
(que é inevitável, pois sem ela a situação
cultural do Brasil contemporânea não é compreensível)
não poderá contentar-se apenas com dados psicológicos
ou biográficos. A obra de Dora não se revela apenas
através de sua vida. (Uma prova disso é que tais
críticas podem errar completamente no tocante ao fenômeno
estético). A hipótese de uma 'inspiração'
parece inevitável no caso dos livros de Dora.
Isto é inquietante, pois parece indicar que Dora faz poesia
'inconscientemente'. O dilema de Flexor: 'Arte ou engajamento',
o dilema de Campos: Espontaneidade ou Intenção são
dilemas de coação da escolha, portanto dilemas para
os que são condenados a agir livremente. Para Dora isso
não tem qualquer significado. Ela não é livre
para fazer poesia, mas é apenas livre quando faz poesia.
Para ela, arte é engajamento, oração; e espontaneidade
é para ela intenção. No nível do poetar
ela não pode compreender o dilema de forma alguma. Isto
parece permitir a seguinte conclusão romântica: ela
é autêntica poesia, e os outros não são
autênticos num sentido tão radical da palavra. Infelizmente,
a realidade concreta não é tão romântica.
'Autêntica' significa para o homem moderno (para aquele
que é condenado a tomar-se como sujeito) distanciar-se
de si mesmo e também da 'inspiração' que
o toma. Toda virgindade poética está definitivamente
perdida.
Cabe aqui uma palavra de advertência: a poesia de Dora não
é de modo algum ingênua, como poderia sugerir o que
foi dito acima. Pelo contrário, ela é conscientemente
elaborada, tanto lingüística quanto simbolicamente.
Nela encontramos textos tecnicamente experimentais. Sua 'virgindade'
dever ser procurada em outro nível - não no nível
do poetar - mas no engajamento da poesia. Dora vê-se a si
mesma claramente quando faz poesia, e se impõe uma rígida
disciplina ao fazê-la. Mas não tem distância
alguma em relação ao seu 'ser poeta' Ela possui
distância crítica em relação a cada
poema, cada linha, cada palavra; mas nenhuma em relação
a si mesma como poeta. Ela se aceita sem critica. Nem vê
este problema. Para ela 'ser poeta' é um Sosein
e não um Dasein. Ela dá o passo para trás
em relação ao poetar, mas não em relação
ao ser poeta, e este segundo passo é o passo no sem-chão
(bodenlos), de que sofriam Flexor e Rosa. Por que Dora
não deu esse passo? Essa pergunta (que para ela não
se coloca) é a pergunta fundamental do próprio Dasein
e a base dos diálogos com ela.
Teoricamente há duas respostas possíveis: uma é
que Dora teme o passo. (Und der Mensch fürchte die Götter
nicht, Schiller). Outra é que Dora esbarra em algo
ao dar esse passo. (Contra o escudo de Davi, por exemplo.) A
terceira alternativa, a de que Dora não é capaz
de dar esse passo é excluída. Ela é um espírito
claro e poderia ultrapassar-se a si mesma (ela tem uma consciência
reflexiva). As duas respostas possíveis ('temor' e 'tremor'
ou 'fé') podem nem parecer-lhe contraditórias. Mas
para aquele que deu o passo decisivo, a contradição
é decisiva; pois trata-se da contradição
entre 'perdição' e 'salvação', entre
'fechamento' e 'abertura'. No entanto, infelizmente esta diferença,
que seria um critério fundamental para uma critica do trabalho
de Dora não é atingida por quem estiver em estreito
contato pessoal com ela. Um tal contato, que no caso de Flexor
e de Rosa, tanto contribui para a compreensão de seu trabalho,
lança no caso de Dora uma sombra. Isto tem que ser confessado,
sem ser compreendido.
Indubitavelmente porém qualquer futura crítica da
obra de Dora deverá partir mais do que do que apenas critérios
estéticos. Trata-se de uma poesia religiosa. A prosa de
Dora se situa num contexto religioso, mas a poesia de Dora é
uma expressão religiosa. Infelizmente não cabe aqui
comentar sua poesia. Ela não permite um julgamento genérico.
Toda avaliação genérica é banal e
esta poesia requer análise paciente ao nível de
cada palavra. Se há textos que exigem uma 'close reading',
são estes. Ler Dora significa mergulhar num universo onde
tudo é literalmente novo. Podemos criar mapas de um tal
universo. Seriam como mapas da América do fim do século
XV. De um modo geral, podemos dizer que os poemas surpreendem
e fascinam como tudo o que ainda não foi descoberto.
Assim, o problema da 'intuição' deve ser deixado
de lado - embora se tenha consciência da ligação
entre 'intuição' e 'vocação' (no sentido
de 'Schema's Israel'(ouve e obedece) embora se trate aqui do fator
decisivo da poesia de Dora. Mas mesmo que ela se veja como um
'instrumento' e que não compreendamos esse fenômeno,
resta uma grande série de questões a serem comentadas
conjuntamente. Entre estas ocupa um lugar importante a do 'símbolo'.
Como esta questão veio à tona no decorrer dos diálogos
que tivemos caracteriza o seu clima - de um certo modo o problema
do símbolo sempre nos preocupara como um problema central.
Quando nos dedicamos, desde o início de nosso próprio
desenvolvimento à filosofia da linguagem, isto foi porque
vivenciávamos principalmente na linguagem um sistema de
símbolos. E quando esta preocupação se estendeu
posteriormente à área abrangente da Comunicação,
foi porque reconhecíamos a essência da comunicação
na 'mediação' e portanto na simbolização
de mensagens. O problema do símbolo aparece-nos certamente
sob diversos aspectos. Por exemplo, o símbolo é
um fenômeno que substitui outro, isto é, o significa.
Logo, a totalidade dos símbolos é um universo que
significa outro. Mas isto descreve exatamente a relação
entre o 'espírito' e o mundo das coisas concretas'. Ou
o símbolo representa sua significação dialeticamente,
ele a substitui e ao mesmo tempo a traz à consciência.
E esta dialética da mediação simbólica
é um problema fundamental do conhecimento. Ou então,
pelo fato de um símbolo substituir outro fenômeno
passa a adquirir significado. Fenômenos que não substituem
outros, não têm significado. Igualmente sem significado
são os símbolos que apenas pretendem representar
um fenômeno (símbolos vazios). Portanto, o mundo
das coisas concretas é sem significado e igualmente sem
significado é o pensamento formal 'puro'. Em resumo, simbolizar
significa conferir significado àquilo que não o
tem ('dar sentido'); e decodificar significa redescobrir o sentido
dado e voltar às coisas concretas (no sentido de Husserl
'zurück zur Sache'. Assim, a teoria de comunicação
parece oferecer-se como método de através de decodificação
radical, avançar em direção a uma teoria
radical das coisas. Pois esta percorre o símbolo como mediação
entre sujeito e objeto em sentido inverso. Decodificar torna-se
sinônimo de tornar-se estranho ('ent-fremden'). Assim o
símbolo aparece como equivalente ao 'logos' heideggeriano,
mas o método é oposto ao de Heidegger; não
é pela manipulação de 'logos', mas pela demolição
que se pode chegar à coisa e assim evitar o antropocentrismo
de Heidegger (Existencialismo). Por isso a síntese possível
de fenomenologia, Lógica formal e dialética parece-nos
o método do futuro.
Em Dora o símbolo não é mediação
primeira entre sujeito e coisa concreta, mas entre o sujeito e
o transcendente. O significado último do símbolo
não é uma coisa no mundo vivo, mas o que está
do outro lado dos limites do mundo vivo. Para ela também
o símbolo é um equivalente do 'logos', mas porém
no sentido heideggeriano ou da lógica simbólica,
mas no sentido da Stoa e do cristianismo. Cristo como Logos, para
ela, não só é o mais alto símbolo,
a mediação par excellence, mas ao mesmo tempo
a chave da decifração de todos os significados,
da decodificação radical. Segundo achamos, o símbolo
é obra humana (através da convenção
ou de outra forma criada) e serve para superar o alheamento humano
diante das coisas concretas. Dora, pelo contrário, considera
o símbolo como uma obra transumana (uma revelação)
e deve salvar o homem do seu alheamento de seu chão transcendente
(do pecado original). Dito de outra maneira, para nós o
símbolo é um meio de outorgar um significado ao
absurdo do mundo, e a decodificação é uma
desocultação do absurdo. Para Dora, o símbolo
é um modo de manifestar o significado do mundo, e a decodificação
é, para ela, uma descoberta do significado autêntico.
Aqui se mostra uma profunda dicotomia, que cinde a cultura ocidental
e a cada um de nós, individualmente, de um modo absurdo;
a dicotomia entre gregos e judeus. Do ponto de vista dos gregos,
o alheamento é a perda do contato imediato com o 'topos
uranilós' e portanto é necessária a mediação
através do 'Logos' como 'Soter' (Salvador). Do ponto de
vista dos judeus o alheamento é a perda de contato imediato
com as coisas do mundo vivo, e esta perda se dá através
da inserção dos símbolos entre o homem e
o mundo vivo. Por isso, a salvação para os gregos
está na mediação (no Logos) e para os judeus
na ruptura de toda mediação. Pois para os gregos
o alheamento é um equívoco e para os judeus, um
pecado. Investigar (Lógica) salva segundo os gregos e corrompe
segundo os judeus. Nenhum dentre nós pode escapar a essa
dicotomia, não só porque as duas concepções
estão ancoradas em nós, mas principalmente porque
em nós se confundem em diversos níveis (por exemplo,
no cristianismo, na ciência e no marxismo.) Ninguém
pode ser grego ou judeu simplesmente, porque não se é
mais capaz de distinguí-los claramente um do outro. Quando
ocorre aparentemente uma separação (por exemplo,
como o Renascimento versus Reforma), devemos constatar como é
judeu o Renascimento aparentemente grego e como é grega
a Reforma aparentemente judáica (porque evangélica).
No decorrer com os diálogos com Dora foi um ganho inestimável
ver comprovado clara e inevitavelmente, através do problema
do símbolo, o que acabamos de dizer.
A ambivalência do símbolo, seu significado ao mesmo
tempo "concreto" e "transcendente" (de tal
modo que os dois conceitos se confundem) é decididamente
uma mensagem da poesia de Dora. Ela faz lembrar singularmente
o pensamento medieval, a Kabbala, a alquimia, Raimundus Lullus,
apontando assim para a poesia concreta. No centro de sua poesia
há uma série denominada "Tapeçarias",
que evoca realmente tapeçarias medievais (como as que podemos
ver em Beaune ou Angers). Com sua estrutura logicamente perfeita,
com os seus símbolos paradoxalmente secretos e transparentes,
com a aparente ingenuidade e efetiva perfeição técnica,
sobretudo com a respiração de sua beleza sutil,
ela é uma introdução ao universo de Dora.
Poetar significa para ela tecer símbolos salvíficos
que nos ancoram novamente na verdadeira realidade. Por isso, poetar
significa para ela o mesmo que orar ou rezar, e é talvez
por isso que não é capaz de dar o passo para trás
da poesia: esse passo a faria entrar no totalmente Outro, no significado
do mundo. Ter vivenciado com ela este movimento para além
do símbolo foi uma experiência insubstituível,
difícil de avaliar.
Outro tema das nossas conversas deve ser mencionado: Rilke. Para
Dora, ele é principalmente o poeta das Elegias de Duino
que ela traduziu magistralmente para o português. Para nós
mesmos, Rilke é um rio caudaloso que sempre aponta para
as Elegias e os Sonetos, mas que fala mais eloquentemente através
de seus poemas menores, como A pantera, O cisne,
Um profeta, ou A morte é grande. Pois o problema
de Rilke, tal como o vemos, é caminhar num atalho perigoso,
entre o kitsch e a beleza insuportável. Como Rilke soluciona
isso é sempre surpreendente: como ele rima em A morte
é grande, "Mundus" e "uns", a posição
da palavra "geruht" no Cisne; como rima "verlassen"
e "Kassen" em Os reis do mundo estão velhos.
Só quando o vivenciamos podemos compreender por que nas
Elegias o belo nada mais é do que o início do terrível
que desdenha destruir-nos. O kitsch como horizonte do belo (a
"gente" como horizonte do "se") - este é
o problema de Rilke; a ponte entre o "rebanho" nietzscheano
e a "conversa fiada" em Heidegger. Rilke é profético
quando prediz o kitsch como forma cultural do futuro. Aliás,
o poema Os reis do mundo estão velhos é definitivamente
indispensável para qualquer exame do problema do kitsch.
Pois ele não deve ser avaliado apenas esteticamente, mas
também orficamente.
Este porém não é o Rilke de Dora. Ela não
vê de modo algum um traço do kitsch que Rilke pressagia
e significa. Em sua tradução de Rilke não
há vestígio do kitsch. Para ela, Rilke é
a capacidade incrível de tornar a linguagem "usual"
transparente para o significado transcendente. Por exemplo, seu
uso da palavra "calmo" ou "necessitar". Como
ele emprega a palavra "terra". Ou os "amantes"
na segunda pessoa do plural. Para ela, autêntica poesia.
Derramar vida em palavras mortas. Tal modo de ler Rilke abre horizontes;
ela relaciona Rilke não apenas com Goethe, mas com os eslavos,
não só com os poetas de Praga, mas também
por exemplo com Maiakowski, com o formalismo russo do qual Rilke
foi contemporâneo. Uma prova de que Rilke não é
apenas um poeta "decadente", como muitos críticos
alemães parecem acreditar. Dora o experienciou melhor.
Provavelmente Alemanha, mais do que no Brasil, "as pálidas
filhas" entregaram "as coroas doentes do poder".
O que na Alemanha morreu poderia talvez nascer sob uma nova forma
no Brasil, graças às obras criadoras como as de
Dora - no caso de que haja ainda esperança para um "projeto
brasileiro"; pois a luta é desigual: de um lado, a
tradução de Rilke para o português, de outro
a tradução da tecnologia para as florestas brasileiras.
O kitsch deve triunfar? O verdadeiro futuro brasileiro (como Dora)
deve fazer o "progresso" recuar ou incorporar-se a ele.
Algo de valiosamente belo poderá ser sufocado com isso
e nada mais se poderia fazer do que testemunhar este processo
da Europa.
E também a vivência do diálogo com Dora: um
mútuo encontro de duas existências tomadas pelo Belo
na onda ascendente do kitsch, da eficiência e do pathos
grandiloquente. Este encontro foi, em parte, o resumo da resolução
tomada de afastar-me do Brasil. Se, como sabemos, o símbolo
é ambivalente, se ele também comporta dois lados,
pode ser que o engajamento no mundo concreto signifique alheamento
da autêntica realidade no momento em que não houver
mais nenhum relação entre o mundo concreto e a realidade
autêntica. Aqui se pede um suspender-se uma "espera".
Não é porém a suspensão uma forma
de contestação, no sentido de "Eles também
servem, aqueles que meramente param e esperam?" Tal questão
pertence estreitamente ao sentido do pensamento de Dora.